29.10.2017
500 anos da Reforma: E agora? Como trabalharemos?
A visão do trabalho antes da Reforma
Gênesis 2.15
[NVT] O SENHOR Deus colocou o homem no jardim do Éden para cultivá-lo e tomar conta dele.
Insatisfação com o trabalho
Era uma conferência motivacional de um dia. O centro de convenções estava lotado com 5.000 homens e mulheres de negócio. Os preletores eram todos de renome internacional, como por exemplo, o ex-secretário de defesa norte-americano: o general Colin Powell, o ex-técnico de basquete e locutor esportivo da ESPN: Dick Vitale, e Tony Robbins: um estrategista, escritor e palestrante motivacional estadunidense. Um dos palestrantes iniciou sua palestra com a seguinte pergunta:
Se você chegasse à sua casa hoje à noite e descobrisse que um parente distante morreu e deixou como herança para você na quantia de 10 milhões de dólares, você iria trabalhar amanhã de manhã?
Ouviu-se, então, um brado ressonante: “Não!”.
A resposta daquela audiência não nos surpreende. Um instituto de pesquisa nos EUA, o Gallup, revelou que 77% dos americanos odeiam seus empregos. Isto significa que menos da metade dos entrevistados afirmaram estar satisfeitos com os seus trabalhos! Outra pesquisa descobriu que os americanos odeiam seus empregos mais hoje do que a 20 anos atrás.
A coisa não é muito diferente no Brasil. Pesquisa da Isma Brasil (International Stress Management Association) mostrou em 2015 que 72% das pessoas estavam insatisfeitas com o trabalho. A revista Isto É Dinheiro, em janeiro deste ano, revelou que entre os profissionais entrevistados pela Elancers, apesar de haver 12 milhões de desempregados no Brasil, existe uma alta insatisfação com a carreira, que é de 46% entre os homens e de 49% entre as mulheres. Por quê?
O trabalho da Elancers revela que a principal queixa não é a de remuneração salarial, mas sim de “reconhecimento profissional” e “satisfação pessoal com o trabalho”. Esses dois últimos itens (reconhecimento e satisfação), somados, correspondem a mais de 67% dos anseios dos entrevistados, contra 12,3% de queixa por “salários ou benefícios”.
As principais causas da insatisfação profissional, inclusive entre cristãos, são sempre as mesmas: excesso de trabalho, falta de reconhecimento, desgosto pelo que se faz, além de baixos salários e poucos benefícios. O que esses dados nos revelam? Parece-me que somos, equivocadamente, tentados a reduzir o trabalho em um meio de se obter reconhecimento, satisfação e sustento pessoal. Só isso!
Esta visão distorcida e reducionista aponta que transformamos o trabalho em algo que é para mim e para o que é meu; nada se vê de busca pelo bem comum e o benefício do próximo através de nosso trabalho; nada de busca pela glória de Deus em tudo o que nós fazemos. Não é por acaso, portanto, que haja tanta insatisfação como trabalho.
Retomando o caminho
Além do trabalho ter se tornado os meios para um fim: eu e o que é meu. Todos, inclusive cristãos, abraçaram a noção pagã de que o lazer é bom e o trabalho é ruim. Todos odeiam segunda-feria e amam sexta-feira. Por quê? Porque o lazer é bom e trabalhar é ruim. Outra coisa: ergueu-se um muro, separando o que é “sagrado” (o trabalho da igreja) do que é “secular” (o trabalho como mal necessário).
Os Reformadores, porém, ensinaram que todo trabalho abraçado como um chamado (vocação) e realizado “como para o Senhor” (Cl 3.23) é nobre. Paul Helm em seu livro The Callings: The Gospel in the World, afirma que
O trabalho é parte do chamado de um cristão […] essa idéia bíblica teve uma profunda influência na Europa e na América do Norte desde a Reforma, mas foi esquecida em grande parte, devido ao eclipse da influência do evangelho cristão na vida nacional.
Como crentes em Cristo, precisamos encarar o nosso fracasso e viver como discípulos de Jesus no local de trabalho, e também refletir teologicamente sobre como podemos integrar nossa fé e nosso trabalho, colocando nossa profissão à serviço do reino de Deus. Temos que aprender não somente a trabalhar para viver, mas também viver para trabalhar para glória de Deus. Portanto, o objetivo dos três estudos de hoje, celebrando os 500 anos da Reforma Protestante, é buscar entender como a igreja caminhou para tão longe da verdade bíblica da vocação profissional e, à luz dos princípios bíblicos resgatados pela Reforma, trilhar o caminho de volta.
O problema
Os Guinness, no excelente livro O Chamado: uma iluminadora reflexão sobre o propósito da vida e o seu cumprimento, afirma que (p. 13)
o chamado é a verdade que Deus nos conclama a si mesmo de tal forma decisiva que tudo que somos, tudo que fazemos e tudo que possuímos é investido nessa devoção especial, nesse dinamismo vivido como resposta à sua conclamação e seu serviço.
Adiante no livro, Os Guinness continua explicando que há uma diferença entre o nosso chamado primário e nosso chamado secundário (p. 39):
Nosso chamado primário como seguidores de Cristo é dele, por meio dele e para ele. Primeiro e principalmente somos chamados para Alguém (Deus), não para alguma coisa (como maternidade ou paternidade, política, magistério, ministério) ou para algum lugar (como a favela ou a longínqua Mongólia).
Nosso chamado secundário, considerando quem Deus é como soberano, é que todos, em todo lugar e em tudo, devemos pensar, falar, viver e agir inteiramente para Ele. Portanto, podemos dizer corretamente que como matéria de chamado secundário fomos chamados para criar um lar, ou exercitar o direito ou ensinar história da arte. Mas estas e as demais coisas são sempre o chamado secundário, não primário. São chamados — não O Chamado. São nossa resposta pessoal ao chamado de Deus, nosso atender de sua convocação. Os chamados secundários são importantes, mas somente porque o chamado primário tem importância maior.
Falta de compreensão bíblica do trabalho e do chamado tem sido a causa não só de tão elevado número de insatisfação no trabalho, mas também de toda sorte de distorção do trabalho. Mas, por que nós temos a visão tão assim equivocada? Como nós chegamos a este ponto?
Breve história do trabalho e do chamado
Se olharmos para trás, nos últimos 2.000 anos de história cristã, veremos que a ideia de trabalho e vocação foi entendida de forma bastante diferente em momentos distintos. Nos anos anteriores à era cristã, encontramos duas visões bem contrastantes do trabalho cotidiano entre os gregos e os judeus.
A visão grega do trabalho
No período do Novo Testamento, a visão greco-romano do trabalho era definida por Aristóteles; ou seja: o trabalho manual era considerado uma maldição. Para se ter uma ideia, Aristóteles dizia que estar desempregado era uma boa coisa, pois permitia que uma pessoa participasse da vida de contemplação. No livro X da Ética a Nicômaco, Aristóteles argumentou que a vida contemplativa é a vida mais feliz para o ser humano. O filósofo chegou a ensinar que é desmoralizante e degradante trabalhar com as mãos ou trabalhar para receber salário.
Para os gregos, a sociedade estava organizada de tal forma que alguns poderiam aproveitar a benção do “lazer” enquanto o trabalho era feito por aqueles em menores posições socioeconômicas ou escravizados. Em resumo: o trabalho diário era degradante e algo que alguém deveria evitar. Certamente, pensavam os gregos, não havia nada espiritualmente significativo ou edificante sobre o trabalho diário.
A visão judaica do trabalho
Embora os judeus também valorizassem o tempo separado para pensar sobre problemas e se envolverem em meditação ou contemplação, eles tinham uma visão diferente da dos gregos sobre o trabalho. O Antigo Testamento atribuía valor elevado ao trabalho, mesmo ao trabalho servil. O trabalho era parte dos propósitos de Deus na criação. Deus mesmo trabalha desde o início. Assim é que a reflexão teológica era feita por pessoas que também se dedicavam diariamente à vida cotidiana no mundo.
É importante notar que os mestres judeus, ao contrário de seus correspondentes gregos, não deveriam viver exclusivamente das contribuições de seus alunos, mas precisavam ter algo o que fazer para ter com o que se sustentar.
Saulo de Tarso (que se tornaria o apóstolo Paulo) era um exemplo perfeito da idéia judaica do trabalho no primeiro século da era cristã: era um cidadão romano, algo que lhe conferia certo status social e privilégios em relação às leis, propriedade e governança; era aluno de Gamaliel o ancião, considerado uma das principais mentes judaicas de seu tempo; no entanto, mesmo sendo o brilhante estudante aos pés do grande mestre, Saulo arrumou tempo para aprender uma profissão para se sustentar; era fazedor de tendas.
A visão cristã do trabalho
Tendo o Antigo Testamento como pano de fundo, não é surpreendente ver a mesma apreciação do trabalho na igreja cristã do primeiro século. Embora ele tenha chamado seus apóstolos, retirando-os de suas vocações originais, Jesus não fez nenhum apelo geral para que todos os cristãos abandonassem o trabalho diário. Aliás, grande parte do ensinamento do Senhor foi retirado de temas do mundo do trabalho cotidiano, sem quaisquer desculpas.
Paulo também possuía uma visão positiva do trabalho, quando ele ordenou a todos os cristãos que continuassem em seus empregos ou estados e que trabalhassem bem (Cl 3.23-24; 1Ts 4.11-12). Ele mesmo continuou em seu comércio como fazedor de tendas durante seu ministério de plantação de igrejas (At 18.3).
Continuar em suas ocupações profissionais cotidianas foi, aparentemente, o padrão cristão geral logo após o período apostólico. Os cristãos davam glória a Deus através de suas ocupações ou profissões. Eles tinham os mesmos empregos que os incrédulos pagãos, mas eles realizavam esses trabalhos de uma maneira distintamente cristã. Na Carta a Diogneto — de autor desconhecido, é um dos mais antigos documentos cristãos (Séc. II) que deixa transparecer como era a vida dos primeiros cristãos —, nós lemos uma descrição da vida cotidiana dos cristãos nos seguintes termos:
Os cristãos, de fato, não se distinguem dos outros homens, nem por sua terra, nem por sua língua ou costumes. Com efeito, não moram em cidades próprias, nem falam língua estranha, nem têm algum modo especial de viver. Sua doutrina não foi inventada por eles, graças ao talento e a especulação de homens curiosos, nem professam, como outros, algum ensinamento humano. Pelo contrário, vivendo em casas gregas e bárbaras, conforme a sorte de cada um, e adaptando-se aos costumes do lugar quanto à roupa, ao alimento e ao resto, testemunham um modo de vida admirável e, sem dúvida, paradoxal. Vivem na sua pátria, mas como forasteiros; participam de tudo como cristãos e suportam tudo como estrangeiros.Toda pátria estrangeira é pátria deles, mas em cada pátria são estrangeiros. Casam-se como todos e geram filhos, mas não abandonam os recém-nascidos. Põe a mesa em comum, mas não o leito; estão na carne, mas não vivem segundo a carne; moram na terra, mas têm sua cidadania no céu; obedecem as leis estabelecidas, mas com sua vida ultrapassam as leis; amam a todos e são perseguidos por todos; são desconhecidos e, apesar disso, condenados; são mortos e, deste modo, lhes é dada a vida; são pobres e enriquecem a muitos; carecem de tudo e tem abundância de tudo; são desprezados e, no desprezo, tornam-se glorificados; são amaldiçoados e, depois, proclamados justos; são injuriados, e bendizem; são maltratados, e honram; fazem o bem, e são punidos como malfeitores; são condenados, e se alegram como se recebessem a vida. Pelos judeus são combatidos como estrangeiros, pelos gregos são perseguidos, a aqueles que os odeiam não saberiam dizer o motivo do ódio. Em poucas palavras, assim como a alma está no corpo, assim estão os cristãos no mundo.
Vejam que, no ordinário, mas vivendo de forma extraordinária, os primeiros cristãos chamavam a atenção de seus concidadãos incrédulos e pagãos pela forma distinta como viviam e como trabalhavam. Eles foram verdadeiramente sal e luz em sua cultura, e assim foi que mudaram radicalmente o mundo nos primeiros séculos após a morte e ressurreição de Cristo.
A guinada do terceiro século
No início do terceiro século é que começamos a ver uma mudança sutil na forma como os cristãos entendiam trabalho e vocação. Conflitos com judeus e pagãos deram origem a perseguições, o que levou os cristãos a se verem em guerra com a cultura ao seu redor. Eles adoravam um Deus diferente, viviam por uma lei diferente, tinha um caráter diferente e, portanto, viam o mundo como simplesmente perverso. Sob essa ótica, Tertuliano, por exemplo, argumentou que os cristãos não podiam participar das forças armadas, da política ou do comércio com o mundo. “Depois de nos tornarmos cristãos”, disse Tertuliano, “não precisamos de filosofia grega”. Afinal, dizia Tertuliano, Jerusalém e Atenas não têm nada a ver uma com a outra.
Mais tarde, à caminho do final do Séc. III, com o fim da perseguição, a separação entre Jerusalém e Atenas começou a desaparecer. Os Pais da Igreja começaram a ser mais influenciados pelo pensamento grego. Em sua teologia, a visão positiva do trabalho como obra de Deus começou a mudar para a visão grega de que o trabalho é degradante. Podemos ver essa influência, por exemplo, nos escritos de Eusébio e de Agostinho.
Eusébio de Cesareia escreve sobre as duas maneiras diferentes de viver. Existe a “vida perfeita”, a vita contemplativa, constituída de vocações sagradas dedicadas à contemplação: esta vida é reservada para sacerdotes, monges, freiras e aqueles em ordens religiosas similares. Depois, há a “vida permitida”, a vita activa, que engloba as vocações seculares dedicadas à ação: como governar, cultivar, criar, negociar, soldar e cuidar do lar.
Eusébio definia a vida cristã perfeita como sendo dedicada a servir a Deus, sem o trabalho físico cotidiano. Aqueles que escolheram trabalhar (ou tiveram que trabalhar) para sobreviver eram cristãos de segunda classe. Aqui vemos a semente do monasticismo, que se desenvolveria completamente na igreja medieval durante a Idade Média.
Agostinho, de maneira semelhante, distinguiu entre a vida ativa e a vida contemplativa. Enquanto ambos os tipos de vida eram bons — Agostinho louvava, por exemplo, o trabalho dos agricultores, artesãos e comerciantes — a vida contemplativa era de ordem superior. Às vezes será necessário seguir a vida ativa, mas, sempre que possível, o cristão deverá escolher a outra, a contemplativa. “A contemplativa é a vida amada, a outra, a ativa, é a vida suportada”, dizia Agostinho.
A igreja não só abraçou a visão de Agostinho, mas a expandiu até o ponto de tê-la dominando o pensamento cristão até o período da Reforma Protestante. A dualidade entre o espiritual e o secular estava sendo estabelecida. Buscar a vida contemplativa ou um papel profissional na igreja em breve seria a única vocação verdadeiramente sagrada.
A visão medieval do trabalho
A divisão entre secular e sagrado produziu a crença equivocada de que o trabalho tinha menos valor do que a contemplação no Reino de Deus. Até a Reforma, esse erro moldou bastante o pensamento cristão subsequente em relação à vocação. Henlee H. Barnette, no livro Has God Called You?, documentou:
No momento em que o cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano, a distinção entre clérigos e leigos já estava bem estabelecida. Com o estabelecimento do celibato para o clero no século XI, esta demarcação foi completa e os leigos foram relegados ao status de segunda classe na igreja.
Esta tendência também foi reforçada pelo surgimento da espiritualidade monástica, que considerava a vocação como um afastamento do mundo para o isolamento no deserto ou no mosteiro. Hugh Whelchel escreveu que
na Igreja Medieval, ter uma vocação ou um chamado referia-se exclusivamente ao trabalho da igreja em tempo integral. Se uma pessoa sentia um chamado, isso era um sinal de que ele ou ela poderia “ter uma vocação”, o que significava se tornar padre, monge ou freira. As ocupações ordinárias da vida — ser camponês ou empregado de cozinha, fazer ferramentas ou roupas, ser um soldado ou mesmo rei — eram reconhecidas como necessárias, mas mundanas. Essas pessoas poderiam ser salvas, mas estavam atoladas no mundo. Servir a Deus de todo o coração e viver uma vida genuinamente espiritual exigia um compromisso de tempo integral, pois “perfeição” só pode ser obtida nas Ordens Sagradas da Igreja, nas quais um homem ou mulher dedica todos os dias à oração, contemplação, adoração e serviço de Deus. Mesmo o casamento e a paternidade, embora reconhecidos como coisas boas, eram vistos como ônus para a vida religiosa. Dessa forma, “ter uma vocação” incluía a disposição e a capacidade de viver uma vida celibatária.
Portanto, a divisão da vida em categorias sagradas e seculares, durante a Idade Média, com a subsequente subordinação dos leigos ao sacerdócio profissional, marginalizou a visão do Novo Testamento do sacerdócio de todos os crentes. Até que, então, Martinho Lutero é levando por Deus.
A visão reformada do trabalho
Inicialmente, foi através dos esforços de Martinho Lutero que os reformadores do século XVI começaram a recuperar a doutrina bíblica do trabalho. Começaram a reconhecer que toda a vida, incluindo o trabalho diário, pode ser entendida como um chamado de Deus. Em uma afirmação surpreendente para o seu tempo, Lutero escreveu, no tratado Cativeiro Babilônico da Igreja, o que segue:
Portanto, não aconselho ninguém a entrar em nenhuma ordem religiosa ou no sacerdócio. De fato, aconselho a todos contra eles — a menos que estejam munidos com esse conhecimento e entendam que as obras de monges e sacerdotes, por mais sérias e árduas que sejam, não diferem em nada com a visão de Deus das obras do trabalhador rústico no campo ou da mulher fazendo suas tarefas domésticas, mas que todas as obras são medidas diante de Deus somente pela fé.
Lutero levou os cristãos a contrastarem o chamada monástico de servir “fora do mundo” com o chamado autenticamente cristão de servir “no mundo”.
S.D.G. L.B.Peixoto
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