06.09.2020
[Salmo 77] Para Jedutum, regente do coral: salmo de Asafe. 1Clamo a Deus; sim, grito bem alto. Quem dera Deus me ouvisse! 2Quando eu estava angustiado, busquei o Senhor. Orei a noite toda, de mãos estendidas para o céu, mas minha alma recusou ser consolada. 3Lembro-me de Deus e começo a gemer; desfaleço, ansioso por sua ajuda. Interlúdio 4Tu não me deixas dormir; estou tão desesperado que nem consigo falar! 5Penso nos dias que passaram, nos anos que há muito se foram. 6À noite, relembro canções alegres; consulto minha alma e procuro compreender minha situação. 7Acaso o Senhor me rejeitou em definitivo? Jamais voltará a ser bondoso comigo? 8Seu amor se foi para nunca mais voltar? Deixou de cumprir suas promessas para sempre? 9Deus se esqueceu de ser bondoso? Em sua ira, fechou a porta para a compaixão? Interlúdio 10Pensei: “É por esta razão que sofro; o Altíssimo voltou sua mão direita contra mim”. 11Depois, porém, lembro-me de tudo que fizeste, SENHOR; recordo-me de tuas maravilhas do passado. 12Estão sempre em meus pensamentos; não deixo de refletir sobre teus poderosos feitos. 13Teus caminhos, ó Deus, são santos; que deus é poderoso como o nosso Deus? 14És o Deus que realiza maravilhas; mostras o teu poder entre as nações! 15Com teu braço forte resgataste teu povo, os descendentes de Jacó e José. Interlúdio 16As águas te viram, ó Deus, as águas te viram e estremeceram; até as profundezas do mar se agitaram. 17As nuvens derramaram chuva, os trovões ressoaram nas alturas, os teus relâmpagos riscaram os céus. 18No redemoinho ouviu-se o estrondo de teu trovão; os relâmpagos iluminaram o mundo, e a terra tremeu e se abalou. 19Teu caminho passou pelo mar, teu trajeto, pelas águas poderosas, e ninguém percebeu teus passos. 20Conduziste teu povo como um rebanho de ovelhas, pelas mãos de Moisés e Arão.
A pintura mais cara em leilão da história foi vendida em 2012, na cidade de Nova Iorque, pelo valor de 120 milhões de dólares – cerca de 640 milhões de reais em valores da semana passada. Isso mesmo, 140 milhões a mais que meio bilhão de reais! Impressionante! O quadro foi pintado pelo artista norueguês Edvard Munch, em 1893. A obra representa uma figura andrógina (indecifrável, entre o masculino e o feminino) num momento de profunda angústia e desespero existencial e recebeu o nome de O Grito. A fonte de inspiração parece ter sido a vida pessoal do próprio Munch: um homem educado por um pai controlador, que assistiu, quando criança, à morte da mãe e de uma irmã. Decidido a lutar pelo sonho de se dedicar à pintura, Munch cortou relações com o pai e integrou o meio artístico de Oslo, capital da Noruega. Seu estado de espírito ficou bem patente nas linhas que escreveu no seu diário, com a data de 22 de Janeiro de 1892:
Eu caminhava com dois amigos [sobre uma ponte em Oslo] – o sol se pôs, o céu tornou-se vermelho-sangue – eu ressenti como que um sopro de melancolia. Parei, apoiei-me no muro, mortalmente fatigado; sobre a cidade e do fiorde [uma entrada de mar entre altas montanhas], de um azul quase negro, planavam nuvens de sangue e línguas de fogo: meus amigos continuaram seu caminho – eu fiquei no lugar, tremendo de angústia. Parecia-me escutar o grito imenso, infinito, da natureza.
Munch imortalizou essa impressão no quadro O Desespero, que é o primeiro de uma série de quatro, dentre os quais estão O Grito, A Ansiedade e ainda outra versão de O Grito. A força expressiva das linhas, resolução e distorção das formas, e a expressão desesperada da personagem, pintados com cores quentes, revelam a dor e as dificuldades – desespero e ansiedade – que a vida pode impor, levando ao grito, uma forma de expressão desse sentimento.
Asafe, autor do Salmo 77, teria se identificado com O Grito de Edvard Munch, mas com uma diferença significativa: o grito de Asafe alcançou um destino seguro (os ouvidos do Deus que ouve o gemido de seu povo), enquanto o grito do pintor expressionista ecoou pelo vazio sem fim de uma vida em solidão. Ouça, mais uma vez, o primeiro versículo do salmo de Asafe: “Clamo a Deus; sim, grito bem alto. Quem dera Deus me ouvisse!”
Não é que ele não cresse que Deus o estava ouvindo, mas que era assim mesmo que estava se sentido – como se Deus não o ouvisse mais. Adiante, concluindo esse mesmo salmo, o salmista se fará recordar dos grandes feitos de Deus, libertando seu povo do Egito, passando pelo Mar Vermelho e através do deserto, sob os devidos cuidados pastorais proporcionados pelo próprio SENHOR (Sl 77.19-20):
19Teu caminho passou pelo mar, teu trajeto, pelas águas poderosas, e ninguém percebeu teus passos. 20Conduziste teu povo como um rebanho de ovelhas, pelas mãos de Moisés e Arão.
Essas palavras atestam que Asafe, no mínimo, sabia como tudo começou: o SENHOR Deus ouvindo o grito de socorro de seu povo, conforme Moisés registrou em Êxodo 3.7-9 (preste atenção nos verbos que descrevem as ações de Deus):
7Então o SENHOR lhe disse [a Moisés]: “Por certo, tenho visto a opressão do meu povo no Egito. Tenho ouvido seu clamor por causa de seus capatazes. Sei bem quanto eles têm sofrido. 8Por isso, desci para libertá-los do poder dos egípcios e levá-los do Egito a uma terra fértil e espaçosa. É uma terra que produz leite e mel com fartura, […] 9Sim, o clamor do povo de Israel chegou até mim, e eu tenho visto como os egípcios os tratam cruelmente.
Asafe sabia que não é preciso estar escuro lá fora para que o nosso coração se sinta no breu aqui dentro do peito; ele conhecia a noite escura da alma; sabia que nessas horar só há uma saída: o grito da alma pedindo socorro a Deus, a noite toda (Sl 77.2): “Orei a noite toda, de mãos estendidas para o céu, mas minha alma recusou ser consolada”.
Edward J. Young, um dos maiores estudiosos do Antigo Testamento no século passado, costumava dizer em tom de provocação:
Na minha lista de bênçãos infinitas, esta é a principal: que meu coração já sangrou.
Asafe concordaria! Um dia seu coração também sangrou e doeu tanto que ele gritou de dor a noite inteira, mas no final achou conforto na tribulação. Foi quando ele descobriu que até mesmo a dor, quando ela nos une mais a Deus, é uma bênção para o cristão.
A tristeza é que, em contraste com essa espiritualidade profunda que nós encontramos n’Os Salmos, está a espiritualidade superficial e doentia de nossa época, inclusive dos cristãos. OBSERVE: tantas vezes, o que sustenta as pessoas na crise é a negação, o fingir que não está acontecendo nada; outras tantas, o que as fortalece é negar ou transferir culpa – assim, outras pessoas, o mundo e o diabo servem bem a este fim; e quase sempre se fica chocado, decepcionado mesmo com a provação e a calamidade. Na verdade, muitos cristãos esperam passar pela vida sem qualquer luta, sem dor, sem fraqueza, sem dificuldade, sem o menor senso de sofrimento e de tragédia.
Qual é o problema com essa mentalidade? Ela não faz conexão com a realidade, não é verdadeira e, portanto, não ajuda quem quer que seja a viver. Aliás, chega a ser pecaminosa. Como nós precisamos d’Os Salmos, da espiritualidade d’Os Salmos!
Quando se lê Os Salmos e se verifica a angústia do coração dos salmistas, encontra-se os recursos para uma espiritualidade mais profunda: você sai da rasura e aprende a nadar em águas profundas, verifica-se que ela sim – a espiritualidade d’Os Salmos – trata da realidade de nossa própria experiência humana. Com efeito, os salmistas lidaram com as realidades da vida e derramaram a alma diante do Deus vivo – suas alegrias e celebrações, mas também suas queixas, suas decepções, suas dores, suas enfermidades, seus pecados, seu vazio e até seu desespero… tudo era despejado na presença de Deus. Eles nos mostram, ensinam-nos como viver a vida cristã.
Os Reformadores dos séculos XVI e XVII argumentavam que não apenas devemos cantar Os Salmos nos cultos e nas devoções particulares, mas que Os Salmos sempre estarão no centro daquela que se haverá de chamar de uma experiência cristã plena ou completa. Os Salmos realmente nos ensinam como viver a vida cristã. Nós precisamos da espiritualidade d’Os Salmos! Afinal, como deverá se comportar ou agir o cristão quando seu coração sangrar e doer, quando a dor ou o sofrimento chegar, não importando o motivo?
O Salmo 77 é um daqueles salmos que nos ensinam como viver a vida cristã nos dias mais escuros da alma. Ele se divide facilmente em QUATRO PARTES. Há nos versículos 1-3 um forte clamor; então, em segundo lugar, nos versículos 4-10 há uma expressão clara de dúvidas internas; em terceiro lugar, nos versículos 11-15 há uma lembrança dos feitos passados de Deus; então, finalmente, nos versículos 16-20 há um foco no grande ato de libertação de Deus no Antigo Testamento. Essa divisão que acabei de apresentar ajudará na leitura meditativa do salmo em seu momento a sós com Deus (tome nota) – vs. 1-3: clamor por socorro; vs. 4-10: expressão de dúvida; vs. 11-15: lembrança do passado; vs. 16-20: destaque para a libertação de Deus.
Nós caminharemos pelo texto todo sob os seguintes destaques: conforto na tribulação é obtido quando nós aprendemos [1] clamar em oração (vs. 1-3); [2] confrontar o coração (vs. 4-10); [3] consultar a palavra de Deus (vs. 11-20); e [4] contemplar a cruz de Cristo.
Este, como muitos outros, é um salmo de dor. Houve alguma desgraça nacional, provavelmente a catástrofe de 587 a. C., com a destruição de Jerusalém. Naquela ocasião, Nabucodonosor, rei da Babilônia, conquistou a capital e destruiu a cidade e seu Templo, pondo assim fim ao Reino de Judá. Os judeus foram deportados em massa para a Babilónia. Gedalias, governador de Judá, foi assassinado em Mispá e um pequeno punhado dos judeus fugiu para o Egito, deixando a terra de Judá sem habitantes. Asafe, angustiado, orou (v. 1): “Clamo a Deus; sim, grito bem alto. Quem dera Deus me ouvisse!”
Hebreus 5.7 nos revelou que, na hora da angústia, nosso Senhor também agiu assim dessa maneira:
Enquanto Jesus esteve na terra, ofereceu orações e súplicas, em alta voz e com lágrimas, àquele que podia salvá-lo da morte, e suas orações foram ouvidas por causa de sua profunda devoção.
Esse relato nos faz saber que, tendo sido assim até mesmo com o nosso Salvador, será conosco de igual forma. Nessas horas, caberá ao crente clamar em oração com a sinceridade mais profunda do coração (v. 1): “Clamo a Deus; sim, grito bem alto. Quem dera Deus me ouvisse!” O salmista prosseguiu (v. 2):
2Quando eu estava angustiado, busquei o Senhor. Orei a noite toda, de mãos estendidas para o céu, mas minha alma recusou ser consolada.
Asafe está nos contando que os dias de sua angústia foram dias de oração, e essa é uma grande lição para nós. Nossos dias de angústia deverão ser dias de oração. Nosso luto prolongado, nossos suspiros ou gemidos, nossa murmuração de nada adiantarão até que levemos esse luto, essa dor, esse gemido e até a murmuração ao trono da graça. Foi isso o que Asafe fez – ele levou suas dores e dúvidas, sua tribulação, sua escuridão da alma, sua angústia a Deus: “Quando eu estava angustiado, busquei o Senhor.”
Agora, ouça mais uma vez a expressão a seguir: “Orei a noite toda, de mãos estendidas para o céu, mas minha alma recusou ser consolada.” Quando Deus não o respondeu, quando ele sentiu que sua oração não estava sendo ouvida, que parecia que não estava adiantando orar, ainda assim ele não parou de orar. Ele não afrouxou. Ele, como Jacó, se recusou a deixar ir o SENHOR até que ele tivesse uma resposta. Ele recusou qualquer consolo fora de uma palavra de Deus. Todo cristão que aprendeu o segredo da oração fica ainda mais inflamado – não desanimado – em face de uma falta de resposta imediata.
O salmista prossegue. Ouça as palavras sombrias do versículo 3 de Asafe:
3Lembro-me de Deus e começo a gemer; desfaleço, ansioso por sua ajuda.
Ele estava tão abatido que, neste ponto, o simples pensar sobre Deus o perturbava, o deixava ainda mais ansioso e angustiado. Asafe não sabia o que Deus estava fazendo em sua vida. Ele não conseguia explicar os acontecimentos; estava ansioso com tudo se desmoronando ao redor. Sentia-se distante de Deus, como se o SENHOR estivesse contra ele (veremos isso nos próximos versos), a mera lembrança de Deus o perturbava.
Realmente, meu povo, é uma coisa terrível quando o pensamento em Deus perturba. Não há problema mais doloroso para a alma. Talvez alguns de vocês saibam exatamente onde o salmista estava. Eu sei por experiência própria. Recordo-me, em 2005, quando estava com crises agudas de ansiedade e pânico. Samuel tinha dois aninhos e a Isabela era recém-nascida. A Cris amamentava a nossa bebê no quarto dela e eu ficava na poltrona do quarto do Sá, aguardando-o pegar no sono. Tentava orar, mas não conseguia, pois ficava ainda mais ansioso, com a sensação de que voltaria a crise de pânico. Quantas noites foram assim, quando eu “lembrava-me de Deus e começava a gemer; desfalecia, ansioso por sua ajuda” (Sl 77.3)!
No entanto, é importante se lembrar de que mesmo quando sentimos que nosso problema emana do próprio Deus, mesmo quando estamos perturbados por nossos pensamentos sobre Aquele que está no Trono, devemos correr direto para esse Trono e abrir o peito que guarda o coração partido, orar àquele que está no Trono, implorando sua ajuda, mesmo que em gritos durante a noite. Afinal, como lemos em Hebreus 4.15-16:
15Nosso Sumo Sacerdote entende nossas fraquezas, pois enfrentou as mesmas tentações que nós, mas nunca pecou. 16Assim, aproximemo-nos com toda confiança do trono da graça, onde receberemos misericórdia e encontraremos graça para nos ajudar quando for preciso.
Conforto na tribulação é obtido quando se clama em oração.
A seguir, você notará, nos versículos 4-10, como o salmista se virou para o próprio coração, como ele examinou a si mesmo e discerniu as perguntas que estavam circulando em seu homem interior. — Veja, o que nos é posto aqui nos versículos 4-10 são as dúvidas e os questionamentos internos do crente atribulado. — Asafe gritou de angústia nos versículos 1-3. Pudemos ouvi-lo com nitidez. Agora expressará suas dúvidas e seus questionamentos mais profundos. Ele começa dizendo, versículo 4: “Tu [Deus] não me deixas dormir; estou tão desesperado que nem consigo falar!”
Noites sem dormir não são uma novidade, não é verdade? Nós sabemos do que Asafe está falando: às vezes, os problemas são tão grandes que nos deixam perplexos, sem palavras para dizer a Deus ou aos amigos. Apenas gememos, mas não tem problema, pois, como escreveu Paulo, o apóstolo, o Espírito Santo será nosso intercessor (Rm 8.26-27):
26E o Espírito nos ajuda em nossa fraqueza, pois não sabemos orar segundo a vontade de Deus, mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos que não podem ser expressos em palavras. 27E o Pai, que conhece cada coração, sabe quais são as intenções do Espírito, pois o Espírito intercede por nós, o povo santo, segundo a vontade de Deus.
João Calvino foi, como de costume, magistral ao comentar sobre a intercessão do Espírito por nós diante de Deus:
Ainda quando não pareça que nossas orações tenham sido realmente ouvidas por Deus, Paulo conclui que a presença da graça celestial já se manifesta no próprio zelo pela oração, visto que ninguém, de seu próprio arbítrio, conceberia que suas orações são sinceras e piedosas. […] O apóstolo chama de inexprimíveis os gemidos que irrompem de dentro de nós ao impulso do Espírito, visto que vão muito além da capacidade de nosso intelecto.
Diz-se que o Espírito de Deus intercede, não porque ele porventura se humilhe como um suplicante a orar e a gemer, mas porque inspira em nossos corações as orações que são próprias para nos achegarmos a Deus. Em segundo lugar, ele afeta de tal forma os nossos corações que estas orações, pelo seu fervor, penetram o próprio céu. Paulo assim se expressou com o propósito de atribuir a totalidade da oração mais significativamente à graça do Espírito. Somos incitados a clamar [Mt 7.7]. Mas ninguém, por sua própria iniciativa, pronunciaria uma só sílaba, com discernimento, se Deus não ouvisse o clamor de nossas almas que cedem ao impulso secreto de seu Espírito, e não abrisse nossos corações para ele mesmo.
Como é bom saber disso, especialmente quando estamos tão desesperados que não sabemos o que falar, o que pedir, como orar – mas oramos no e pelo Espírito. Nessas horas, soberana e graciosamente, deveremos fazer uma viagem interior, de confronto ao coração.
Asafe começa a lembrar seu coração das misericórdias e libertações de Deus, mas está tendo dificuldade para chegar lá – “Penso nos dias que passaram, nos anos que há muito se foram” (v. 5); ele canta louvores e conversa com a alma dele, desejoso de compreender o que está acontecendo – “À noite, relembro canções alegres; consulto minha alma e procuro compreender minha situação” (v. 6). A seguir, ele posta para si mesmo seis perguntas sobre o caráter de Deus (vs. 7-9):
7Acaso o Senhor me rejeitou em definitivo? Jamais voltará a ser bondoso comigo? 8Seu amor se foi para nunca mais voltar? Deixou de cumprir suas promessas para sempre? 9Deus se esqueceu de ser bondoso? Em sua ira, fechou a porta para a compaixão?
Então ele conclui: “Parece que sim!” Versículo 10:
Interlúdio 10Pensei: “É por esta razão que sofro; o Altíssimo voltou sua mão direita contra mim”.
Asafe até começou a confrontar o próprio coração, mas foi vencido, mesmo que por um momento, pela incredulidade. Chegou ao ponto de jogar na conta de Deus a culpa pela sua dor. Então, como fazer sentido dessa situação?
Mesmo dessa forma, é melhor levar a Deus nossas dúvidas e falta de fé do que não fazer nada relacionado a Deus. Levantar essas perguntas diante de Deus em oração abre a ferida diante dele, chama-o para o nosso sofrimento, permitindo a cura. Alexander MacLaren, pastor escocês do final do século XIX, pregando neste salmo insistiu que fazer essas perguntas a Deus é melhor do que guardar a dor. Ele argumentou que
É melhor colocar dúvidas em linguagem simples do que deixá-las difusas e obscuras, como névoa venenosa, em seu coração. Um pensamento, seja ele bom ou mau, poderá ser tratado quando for articulado. Formular conceitos vagos é como abrir um canal em um brejo para deixar a água escorrer [e a terra poder secar].
É impossível lidar com a insatisfação, a amargura, a descrença… seja o que for que não se consiga expressar abertamente nem submeter à razão, diante de Deus. Oração e confronto do coração diante de Deus são disciplinas terapêuticas, curadoras.
A propósito, antes de prosseguirmos para o próximo ponto, faremos bem em responder as questões do coração de Asafe (Sl 77.7-10) à luz de outro texto dos Salmos. Salmo 103, de Davi, versículos 8-14, 17-18:
8O SENHOR é compassivo e misericordioso, lento para se irar e cheio de amor. 9Não nos acusará o tempo todo, nem permanecerá irado para sempre. 10Não nos castiga por nossos pecados, nem nos trata como merecemos. 11Pois seu amor por aqueles que o temem é imenso como a distância entre os céus e a terra. 12De nós ele afastou nossos pecados, tanto como o Oriente está longe do Ocidente. 13O SENHOR é como um pai para seus filhos, bondoso e compassivo para os que o temem. 14Pois ele sabe como somos fracos; lembra que não passamos de pó. […] 17Mas o amor do SENHOR por aqueles que o temem dura de eternidade a eternidade. Sua justiça se estende até os filhos dos filhos 18dos que guardam sua aliança, dos que obedecem a seus mandamentos.
Asafe tinha passado por um eclipse na alma, mas fez bem ao levar sua incredulidade a Deus em oração, confrontando diante do SENHOR a dificuldade em aceitar a verdade. E meus irmãos, muitas vezes, erroneamente, pensamos que a vida cristã não é para ser cheia de tribulações que nos fazem, por vezes, duvidar até mesmo da bondade, da justiça e do amor de Deus – noites escuras da alma, feridas, decepções. Não se pode negar essas realidades. Temos que confrontar nosso coração e levar a Deus em oração as nossas questões mais perturbadoras. Com efeito, devemos reconhecer nosso pecado de falta de fé, nossa descrença, nossos medos e nossas falhas; devemos olhar profundamente em nosso coração, encará-lo e confrontá-lo à luz da palavra de Deus, e então ir a Deus em oração.
Tendo orado e confrontado o próprio coração, Asafe fez muito bem em voltar-se para os grandes atos de Deus do passado. Dessa forma, ele abastecia sua fé na graça do SENHOR para o seu futuro. VEJA: Nos versículos 11 e 12, o salmista passa a nos mostrar o caminho para sair do buraco. – Como você sai do buraco? – Se você deseja conhecer e experimentar mais conforto divino no meio de sua tribulação, então terá que meditar mais nas ações de Deus e em seus métodos para lidar com o seu povo. O salmista nos diz:
11Depois, porém, lembro-me de tudo que fizeste, SENHOR; recordo-me de tuas maravilhas do passado. 12Estão sempre em meus pensamentos; não deixo de refletir sobre teus poderosos feitos.
O salmista estava se lembrando do que Deus tinha feito no passado para saber como Deus faria no futuro. A seguir, ele passou a refletir no caráter de Deus, versículos 13-15:
13Teus caminhos, ó Deus, são santos; que deus é poderoso como o nosso Deus? 14És o Deus que realiza maravilhas; mostras o teu poder entre as nações! 15Com teu braço forte resgataste teu povo, os descendentes de Jacó e José. Interlúdio
NOTE: Primeiro, o salmista refletiu sobre os procedimentos passados de Deus com seu povo e com ele mesmo (vs. 11-12), então ele passou a meditar no ser mesmo de Deus (vs. 13-15), e meditou até conseguir crer novamente, pensou até aprender, buscou até encontrar, orou até ele ser capaz de sentir tudo isso em seus ossos. — Esse é o caminho que o salmista está mostrando a você e a mim, a nós, meu povo: na tribulação, se quisermos conforto, devemos meditar até crer, pensar até aprender, buscar até encontrar e orar até sentir tudo em nossos ossos (cf. Mt 7.7-8 – procure, bata, peça).
Asafe olhou para trás para se lembrar de como Deus tratou com ele e o povo dele, para que ele pudesse caminhar novamente com fé em direção ao futuro. Era das histórias sobre o trato de Deus com seu povo na história que ele tirava lições de fé e confiança. Então, finalmente, ele se voltou para a grande cena de redenção do Antigo Testamento. Você reconhece a linguagem dos versículos 16-20. Quer ver? Em sua maior parte, os fatos são retirados da travessia do Mar Vermelho, saindo Egito rumo a Canaã. Ouça:
16As águas te viram, ó Deus, as águas te viram e estremeceram; até as profundezas do mar se agitaram. 17As nuvens derramaram chuva, os trovões ressoaram nas alturas, os teus relâmpagos riscaram os céus. 18No redemoinho ouviu-se o estrondo de teu trovão; os relâmpagos iluminaram o mundo, e a terra tremeu e se abalou. 19Teu caminho passou pelo mar, teu trajeto, pelas águas poderosas, e ninguém percebeu teus passos. 20Conduziste teu povo como um rebanho de ovelhas, pelas mãos de Moisés e Arão.
Percebeu o que Asafe está fazendo? Ele está relembrando a maior cena de redenção do Antigo Testamento: lembrando a si mesmo de como Deus conduziu Israel através do Mar Vermelho, libertou-os do Egito, levou-os com mãos fortes para longe de seus inimigos, sãos e salvos. – O que Asafe tira disso? – Se Deus pastoreou seu povo através de tudo aquilo, ainda que pelas mãos de homens como Moisés e Arão (com todas as suas qualidades, mas também cheios de rugas e verrugas), então ele (você e eu também) poderá contar com o Bom Pastor mesmo, ainda que pelo vale da sombra da morte. Nas palavras de Davi, Salmo 23.4: “Mesmo quando eu andar pelo escuro vale da morte, não terei medo, pois tu estás ao meu lado. Tua vara e teu cajado me protegem.”
Jesus disse que no mundo teríamos aflições, mas parece que nos últimos meses o fogo da fornalha do sofrimento se intensificou (esta é a primeira vez, depois de seis meses de isolamento social, que nos reunimos para culto na manhã de domingo!). Não preciso dizer a você como e por que tudo isso aconteceu: desde que começou esta pandemia a vida da gente não é mais a mesma. Pena que todos nós precisemos passar por tudo isso para enxergarmos que a vida não está (nunca foi e nunca será) normal. Muitos, entretanto, fingem que nada está acontecendo: vai passar!; outros não se aquietam, vivem em busca de culpados: vão nutrindo ódio e não descansam; mas os piores são aqueles que não enxergam a mão de Deus em tudo isso, buscando a glória de seu Filho Jesus Cristo e o nosso bem para a salvação – pois sem santificação, ninguém verá o SENHOR; somente os limpos de coração verão a Deus!
Não desperdice esta pandemia! Não desperdice os seus sofrimentos! Saiba como encontrar conforto na tribulação: clame em oração no poder do Espírito Santo; confronte seu coração com a verdade; consulte a palavra de Deus para nutrir sua fé, esperança e amor através do vale da sombra da morte.
Agora, lembre-se de uma coisa muito importante, povo de Deus: para nós que lutamos e procuram conforto hoje, na nova aliança no sangue de Cristo, temos algo muito, muito maior para contemplar: a cruz de Jesus Cristo.
Cristãos correm para a cruz em busca de consolação, e lá nós encontramos um conforto ainda mais profundo, porque descobrimos, olhando para a cruz, que o antídoto para o nosso pecado e para a nossa dor está no que o Senhor Jesus Cristo absorveu no nosso lugar sobre o madeiro no Calvário. A bênção de Aarão foi comprada para nós a preço de sangue, do sangue de Jesus. Números 6.24-26 (NVI):
24“O Senhor te abençoe e te guarde; 25o Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti e te conceda graça; 26o Senhor volte para ti o seu rosto e te dê paz.
Que maravilha! Que bênção! Que consolação! Temos do SENHOR bênção, proteção, favor, graça, bondade e paz. Custou muito caro, entretanto. Para Jesus Cristo, pregado lá na cruz, a bênção araônica foi ao reverso. Em nosso lugar no Calvário, por causa do nosso pecado, nosso Salvador experimentou o oposto do que nele nós temos do Pai:
O Senhor o amaldiçoou e o abandonou; 25o Senhor desviou dele o seu rosto e removeu sua graça; 26o Senhor virou as costas para ele e retirou dele toda paz.
Quando percebemos isso, quando caímos em nós mesmos, subitamente aprendemos que nunca, jamais, estivemos onde Asafe descreveu que esteve. Na verdade, Asafe mesmo nunca experimentou em definitivo aquilo que ele questionou nos versículos 7-10: rejeição, ausência de bondade, falta de amor e compaixão, abandono, o peso da mão da justiça e ira da parte de Deus. Nunca! Jamais! Nem de perto Asafe experimentou o que tudo isso de fato significa. O único que esteve lá foi Jesus Cristo, sobre a rude cruz.
O desconsolo e a escuridão amarga que o salmista provou (e que de tempos em tempos nós também provamos), com efeito, servem para o nosso bem – uma vez que nos remetem para a experiência de Cristo na cruz no lugar do pecador para nos salvar, santificar e levar em glória para o céu.
Regozije-se na cruz de Cristo, crente. Contemple a cruz de Cristo. No calvário, você e eu, todos nós, pela graça e por meio da fé, encontramos conforto na tribulação.
Permita-me terminar com a belíssima meditação de Horatius Bonar (pastor e poeta escocês) na conclusão de seu estudo no Salmo 77:
Chegará o dia em que, com Cristo, nosso Cabeça, cantaremos a respeito da forma segura como a Igreja foi conduzida através das tensões como as do presente até chegar em seu descanso, lembrando-nos das tantas vezes em que estávamos prontos para questionar: “Esqueceu Deus de ser gracioso?” Somos ensinados pelo coração de Asafe, em momentos de desânimo, a lembrar os dias da antiguidade e a assegurar-nos de que o Deus de Israel vive! O Deus da noite de Páscoa, o Deus do Mar Vermelho, o Deus da coluna de fogo e da coluna de nuvem, o Deus do Sinai, o Deus do deserto, o Deus do Jordão, o Deus, também podemos acrescentar, do Calvário e o Deus de Betânia, que nos guiará assim como conduziu Israel, mesmo quando a terra estremecer novamente, até aquele dia em que ele mesmo virá lançar luz sobre seu caminho que estava oculto sob o mar e sobre suas veredas que estavam apagadas pelas grandes águas e sobre seus passos que eram um mistério. Asafe foi o instrumento do Espírito Santo para nos animar aqui, ao nos convidar a olhar para essa imagem como a imagem do Justo, Jesus, sob a nuvem, lembrando-nos dos feitos antigos do SENHOR.
Console-se na tribulação, crente! Olhe para Cristo no Calvário.
S.D.G. L.B.Peixoto
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