11.10.2020
[João 12.23-26] 23Jesus respondeu: “Chegou a hora de o Filho do Homem ser glorificado. 24Eu lhes digo a verdade: se o grão de trigo não for plantado na terra e não morrer, ficará só. Sua morte, porém, produzirá muitos novos grãos. 25Quem ama sua vida neste mundo a perderá. Quem odeia sua vida neste mundo a conservará por toda a eternidade. 26Se alguém quer ser meu discípulo, siga-me, pois meus servos devem estar onde eu estou. E o Pai honrará quem me servir.
Os últimos meses, fustigados pelo novo coronavírus, desavergonhadamente revelaram a lógica que orienta o mundo. Você conseguiu identificar? (Digo, identificar pelo menos na camada mais superficial do subconsciente coletivo.) Qual é a lógica que domina o pensamento das pessoas? Deixemos Leandro Karnal responder – ele que é um dos rostos que mais aparecem nas grandes mídias, tido como um dos grandes pensadores da atualidade. Em entrevista, perguntaram ao historiador, professor da UNICAMP:
— “Quais os nossos desafios em tempos de coronavírus?”
— “A preservação da vida. Há muita gente morrendo.” — respondeu Karnal.
A lógica que gira o mundo, de uma maneira ou de outra, é a preservação da vida: a nossa mesma e a daqueles que amamos. Mesmo os que defenderam a movimentação da economia, em tempos de pandemia e necessidade de isolamento social, argumentaram em prol da vida. Por exemplo, lá em abril, Alessandro Roncoletta, presidente da Associação Comercial e Industrial de Atibaia (SP), argumentou:
Vidas! Sempre vidas em primeiro lugar! Este pensamento inclui logicamente, a retomada das atividades comerciais e econômicas, observando-se regras para o funcionamento seguro de cada atividade, pois se não o fizermos, vidas se perderão em virtude da catástrofe econômica que nos assolará.
Perceberam? — A lógica natural do viver é a preservação da vida. É por isso que já inventamos remédios, vacinas, dietas e uma variedade enorme de dispositivos para salvar vidas: coletes salva-vidas, cintos salva-vidas, botes salva-vidas, cordas salva-vidas, redes salva-vidas, o salva-vidas… e até seguro de vida (O que é um contrassenso – esse último –, pois não é o segurado que recebe o dinheiro; de fato, ele precisa morrer primeiro para que o beneficiário o receba! Mas tudo bem, afinal, a lógica é que o beneficiário tenha algum recurso financeiro para seguir tocando a vida por conta própria. Não é mesmo?).
Recursos sobre ou para o salvamento de vidas – inclusive recursos que visam ao bem-estar, a vida bem vivida – superabundam no mercado contemporâneo. No entanto, na contramão de toda essa lógica natural do viver, está Jesus, o pronunciamento do SENHOR da vida, que diz (Jo 12.25): “Quem ama sua vida neste mundo a perderá. Quem odeia sua vida neste mundo a conservará por toda a eternidade.”
É contralógica essa afirmação do Cristo. Com efeito, dificilmente qualquer outra passagem do Novo Testamento causaria um choque tão grande para aqueles que a ouvissem pela primeira vez. A lógica que governa a gente é a seguinte: “Quem ama sua vida e deseja salvá-la neste mundo, deverá salvá-la ou preservá-la a todo custo.” Jesus, porém, nos diz: “Quem ama sua vida e deseja salvá-la, a perderá ou deixará que ela morra para este mundo, pois somente perdendo-a poderá, de fato, salvá-la para a vida eterna.”
É ou não é contracultural essa fala do SENHOR?
A lógica cristã é absolutamente avessa a tudo nesta vida “pró-vida”! Segue na contramão do que se pensa e se diz sobre a vida e o viver. Com efeito, Cristo está nos apresentando a contralógica cristã. O que, aliás, só é possível para aqueles que estão verdadeiramente vivos. Eis uma das frases geniais do grande pensador cristão inglês G. K. Chesterton: “Só uma coisa morta segue a correnteza [a lógica das massas]. Tem de estar vivo para contrariá-la [viver a contralógica cristã].” É a pura verdade!
Mas o que Jesus quer dizer com ter que perder a vida para ganhá-la? Qual é a lógica da contralógica cristã? Buscaremos responder a esta pergunta ao longo desta mensagem. Antes, porém, faremos bem em ver o nosso texto em seu contexto.
As palavras que temos em tela (Jo 12.23-26) foram proferidas por Jesus após ele ter sido ungido em Betânia (Jo 12.1-11) e na sequência de sua entrada triunfal em Jerusalém (Jo 12.12-19). A cena pública pelas ruas da cidade santa, na qual o Senhor foi aclamado com ramos de palmeiras, despertou a curiosidade de alguns gregos, que procuraram conhecê-lo e conversar com ele pessoalmente (Jo 12.20-22).
Enquanto a mensagem da primeira parte de João 12 (Jesus ungido em Betânia) diz respeito à nossa entrega total – de tudo o que somos e temos – ao Senhor (vs. 1-11), o ponto da segunda parte (a entrada triunfal em Jerusalém) é que Jesus é, de fato, o Rei de Israel – e não apenas o Rei de Israel, mas o Rei do mundo todo. Neste ponto, quando “todo mundo” seguia Jesus – nas palavras dos próprios fariseus (v. 19) –, surgem, do nada, “alguns gregos” (vs. 20-22):
20Alguns gregos que tinham vindo a Jerusalém para adorar durante a festa da Páscoa 21procuraram Filipe, que era de Betsaida, da Galileia, e lhe disseram: “Por favor, gostaríamos de ver Jesus”. 22Filipe falou a esse respeito com André, e os dois foram juntos falar com Jesus.
Surpreendente! Gregos estão pedindo para ver Jesus na celebração da Páscoa. Por que aqui? Por que agora? Parece que Deus quer mostrar, e João quer destacar, que Jesus realmente é o Rei, não apenas de Israel, mas de todo o mundo – aqui representado por gentios, esses estrangeiros gregos. É neste ponto que o Senhor se manifesta, versículos 23-26:
23[Então, há gregos que querem me ver? Aqui está a verdade sobre mim, que é importante para os gregos – e para todas as pessoas de todas as épocas e de todos os lugares – que querem me ver e me conhecer:] Jesus respondeu: “Chegou a hora de o Filho do Homem ser glorificado. 24Eu lhes digo a verdade: se o grão de trigo não for plantado na terra e não morrer, ficará só. Sua morte, porém, produzirá muitos novos grãos. 25Quem ama sua vida neste mundo a perderá. Quem odeia sua vida neste mundo a conservará por toda a eternidade. 26Se alguém quer ser meu discípulo, siga-me, pois meus servos devem estar onde eu estou. E o Pai honrará quem me servir.
Jesus, em outras palavras, estava dizendo:
— Estou a caminho da glória (v. 23). Eu realmente serei alguém para se ver. Eles estão certos em querer me ver. Inclusive, orarei por isso mais adiante – para que eles vejam a minha glória (cf. Jo 17.20). Serei a pessoa mais gloriosa do universo quando meu Pai me ressuscitar dos mortos e me der um “nome que está acima de todos os nomes”, para que ao meu nome todos os joelhos se dobrem – incluindo judeus, gregos e brasileiros. Sim, eles estão certos em querer me ver – e até mesmo em querer ser identificados comigo.
— Entretanto, a forma de me ver não é como, geralmente, se imagina – revolucionário político, mestre de grande sabedoria ou pregador de ética, moral e bons-costumes. Meu caminho para a glória é através da morte (v. 24). Vocês querem ver isso? De fato, vou dar muitos frutos – incluindo gregos. Mas não vou e não posso dar esses frutos de outra forma, a não ser morrendo. Se eu sair da estrada em que estou agora e tentar ser visto por pessoas que querem ver um rei, um sábio, um revolucionário, um curandeiro ou um mestre, ficarei sozinho como mais uma semente em um saco, não cairei no solo para morrer e frutificar. E vocês não serão salvos. Nem os judeus nem os gregos nem os brasileiros. Mas se eu for e morrer em meu caminho para a glória, então darei muitos frutos – vocês serão salvos e os gregos serão salvos, e todos os que crerem em mim serão salvos ao redor do mundo. Então, eles querem me ver? Eis o que eu quero que eles vejam: Vejam-me morto e ressurreto (cf. Jo 12.32-33 – “E, quando eu for levantado da terra, atrairei todos a mim”. Ele disse isso para indicar como morreria.”). Vejam-me dando frutos pela minha obra na cruz.
Essa é a verdade sobre Jesus que ele quis revelar aos gregos – e a nós (ele é o Cordeiro de Deus que morreu, mas ressuscitou para salvar pecadores). Nenhum outro modo de ver Jesus salvará, com efeito, o pecador – cura, ética, moralidade, ensinamentos, usos e costumes, civilidade, revolução política ou social… nada disso salvará o pecador e o mundo. O que salva e santifica é arrependimento e fé na vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
Pois bem, essa é a verdade sobre Jesus que os gregos (e nós) precisavam (precisamos) ver: a morte de Jesus na cruz. Mas essa verdade sobre Jesus deveria se tornar também a verdade sobre os gregos – e deve se tornar a verdade sobre nós. Jesus diz nos versículos 25 e 26: minha morte para a sua salvação é também o meu modelo para a sua imitação. Se você quiser me ver, esteja preparado para fazer o que eu fiz. Prepare-se para me seguir na estrada que estou seguindo. Assim ele diz, versículo 25-26:
25Quem ama sua vida neste mundo a perderá. Quem odeia sua vida neste mundo a conservará por toda a eternidade. 26Se alguém quer ser meu discípulo, siga-me [aonde? Até o Getsêmani, o Calvário e, finalmente, o sepulcro!], pois meus servos devem estar onde eu estou [na presença de meu Pai na glória!]. E o Pai honrará quem me servir.
Portanto, Jesus começa com a verdade sobre si mesmo – é chegada a hora de o Filho do Homem ser glorificado, e isso acontecerá quando o grão de trigo cair na terra e morrer. A seguir, ele torna a verdade sobre si mesmo em uma verdade sobre nós todos que confessamos ser cristãos. Odiaremos nossa vida neste mundo? Vamos segui-lo no caminho para o Calvário? Serviremos o Filho de Deus desta forma? Vamos permitir que a verdade sobre o Filho do Homem se torne a verdade sobre nós? Iremos nos identificar com aquele que estamos tão ansiosos para ver?
Como preservar a vida? Odiando a vida neste mundo. Seguindo Jesus no caminho para a cruz. Servindo o Filho de Deus ao servirmos as pessoas com o mesmo espírito de Cristo. A maneira de os cristãos preservarem a vida é tomando para a si, por meio da fé, a morte de Cristo para a nossa salvação e tornando o modelo de Cristo o nosso modelo para imitação. Não há outra maneira de se preservar a vida, meu povo.
A maneira de vermos Jesus é a mesma que os gregos deveriam ter visto – por suas palavras e ação. Ele diz: Eu vou para a glória. Vou dar muitos frutos. E do jeito que estou indo – i.e.: odiando minha vida neste mundo, sofrendo e morrendo por vocês – é o modelo que vocês deverão imitar. E complementa: Siga-me. Morra comigo. Odeie sua vida neste mundo comigo. Sirva-me. E você preservará sua vida.
Duas coisas se tornam inequivocamente claras neste ponto. Uma é que isso é duro, muito duro. A outra é que isso é glorioso, eternamente glorioso.
Portanto, [1] como uma igreja que busca glorificar o nome de Deus, fazendo discípulos de Jesus Cristo e [2] como cristãos individuais servindo a Deus, ao servir às pessoas no mundo, não podemos perder nenhuma dessas duas facetas: o duro e o glorioso no chamado dos crentes.
A propósito, a melhor maneira de uma igreja fazer política ou garantir uma boa política, não é sendo política – i.e., envolvendo-se diretamente com política e politicagem –, mas fazendo verdadeiros discípulos e discípulas de Jesus; os quais, serão exímios cidadãos, inclusive na política. Portanto, por menos pastores indicando candidatos e por mais pastores capacitando os crentes para fazerem discípulos de Jesus. Essa é a missão da igreja junto ao mundo. E esses crentes, individualmente, farão a diferença. Isso tudo é duro, muito duro; mas é glorioso, eternamente glorioso.
Pois bem, se apenas virmos a parte difícil, perderemos o poder e a liberdade da ação do amor. De outro lado, se virmos apenas a parte gloriosa, minimizaremos o sacrifício de amor. Então, permitam-me debulhar quatro coisas duras e quatro coisas gloriosas que Jesus disse sobre o chamado dos crentes – sobre como o crente preserva a vida, a vida eterna. É a contralógica cristã.
Quatro coisas difíceis no chamado cristão:
Versículo 24: Jesus nos chama a morrer. “Se o grão de trigo não for plantado na terra e não morrer…” Isso é difícil. Morrer é difícil.
Versículo 25: Jesus nos chama a odiar a vida neste mundo. “Quem ama sua vida neste mundo a perderá. Quem odeia sua vida neste mundo…” Isso é difícil. Odiar a vida é difícil.
Versículo 26a: Jesus nos chama a segui-lo – em seu caminho ao Calvário, a caminho da morte. “Se alguém quer ser meu discípulo, siga-me…” Isso é difícil. Seguir Jesus é difícil.
Finalmente, versículo 26b: Jesus nos chama a servi-lo. “Quem me servir.” Ou seja: assumir o papel de garçom em sua mesa para servir aos seus desejos, seja qual for a demanda ou quão humilde seja a posição. Isso é difícil. Servir é difícil.
Isso é o que significa ser um cristão, um discípulo de Jesus. Jesus sabia que seria difícil. Foi por isso que ele mesmo disse em Mateus 7.14 que “a porta para a vida é estreita, e o caminho é difícil, e são poucos os que o encontram”.
É difícil morrer. É difícil odiar sua vida neste mundo. É difícil seguir Jesus no caminho que leva à cruz. É difícil assumir o papel de um servo em um mundo que exalta a fama e o poder. Mas também é glorioso, como veremos a seguir.
Quatro coisas gloriosas no chamado cristão:
Versículo 24: Sim, a semente deve morrer, mas se ela morrer “produzirá muitos novos grãos.” A morte não será em vão. Ela será significativa. Produzirá frutos.
Versículo 25: Sim, se amarmos nossa vida, nós a perderemos; e sim, devemos odiar nossa vida neste mundo. Por quê? Qual será o resultado? Para preservá-la para a vida eterna. “Quem odeia sua vida neste mundo a conservará por toda a eternidade.” As coisas das quais nós abrimos mão para Cristo, ele as colocará de volta em nossas mãos com glória. — Jim Elliot foi preciso, quando afirmou que “não é tolo aquele que abre mão do que não pode reter [a vida neste mundo] para ganhar o que não pode perder [a vida eterna].”
Versículo 26a: Sim, devemos segui Jesus até o Calvário. Mas qual será o resultado? “Se alguém quer ser meu discípulo, siga-me, pois meus servos devem estar onde eu estou.” Jesus usou essas mesmas palavras uma outra vez, lá em João 14.2-3, onde ele descreveu um pouquinho do céu: “Vou preparar lugar para vocês e, quando tudo estiver pronto, virei buscá-los, para que estejam sempre comigo, onde eu estiver.” Se o seguirmos até o Calvário, estaremos com ele na glória – e ele estará conosco, pelo Espírito, todos os dias da nossa vida, até o dia em que nos receberá corporalmente na glória.
Por fim, versículo 26b: Sim, devemos nos tornar seus servos. Mas o que o Pai faz aos seus servos? “E o Pai honrará quem me servir.” Neste mundo caído em que vivemos, servos são desprezados (quando foi a última vez que você disse bom-dia ou boa-noite, com sorriso nos lábios, para o gari ou o lixeiro; já fez isso alguma vez?). Mas são os servos que o Pai honrará em glória.
Não é fácil o chamado cristão, mas é glorioso. Portanto, não perca de vista a glória e a alegria transbordantes nesta vida difícil de se ser um cristão:
Nós morremos; odiamos nossa vida neste mundo; seguimos Jesus no caminho ao Calvário; e nos tornamos servos. E quando assim o fazemos, o que descobrimos é que frutificamos abundantemente; preservamos a vida para a vida eterna; juntamo-nos a Jesus no caminho do discipulado e até a glória no céu; por fim, o Pai nos honrará.
É assim que eu quero viver os poucos anos que me restam neste mundo – e a julgar pela expectativa de vida ao nascer no Brasil – 76 anos, eu com 47 anos agora, já vivi mais da metade da minha vida (restam-me, o quê? duas, três, quatro décadas de vida?). Sejam quantos anos forem que ainda me restam, se muitos ou se poucos nesta vida, quero vivê-los morrendo mais a cada dia, odiando a vida neste mundo, seguindo Jesus no caminho ao Calvário, servindo ao meu Senhor e ao meu próximo. E você, como você deseja viver?
Jesus revelou nas Escrituras quem ele é e o que ele veio fazer. E ele nos convida a nos juntar a ele: — “Minha morte para a sua salvação é o meu modelo para a sua imitação. Eu paguei o preço para ter minhas ovelhas (dou a vida pelas ovelhas – cf. Jo 10.15) e eu mesmo dou a elas o poder para me imitarem (sem mim, nada podeis fazer – cf. Jo 15.5).”
Não será fácil, mas será glorioso. Será para a eternidade. Isso é verdade para a sua vida. Isso é também verdade para o ministério dessa igreja. Multiplicar discípulos e plantar igrejas, exercer compaixão e graça, formar liderança… não será fácil, mas será glorioso.
Passemos agora a algumas implicações práticas da contralógica cristã.
O princípio foi posto de forma franca por Jesus, versículo 24:
Eu lhes digo a verdade: se o grão de trigo não for plantado na terra e não morrer, ficará só. Sua morte, porém, produzirá muitos novos grãos.
A referência de Jesus ao grão de trigo – que permanece infrutífero enquanto é guardado para si mesmo, mas que se torna fecundo quando lançado à terra e nela é enterrado – é para dizer que ninguém, vivendo para si mesmo, conseguirá produzir algo que seja de algum valor eterno. Pois somente quando dizemos não a nós mesmos, tornamo-nos capazes de dizer sim a Deus e às necessidades do próximo – dessa forma, frutificando.
Isso é o que Paulo queria dizer quando escreveu em Gálatas 2.20:
Fui crucificado com Cristo; assim, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. Portanto, vivo neste corpo terreno pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim.
Ou ainda, Gálatas 6.14:
Quanto a mim, que eu jamais me glorie em qualquer coisa, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo. Por causa dessa cruz meu interesse neste mundo foi crucificado, e o interesse do mundo em mim também morreu.
O apóstolo quis dizer que havia morrido para si mesmo a fim de que pudesse viver para Deus e o próximo. Isso ele deixou claro em dois outros textos.
Primeiro texto em que Paulo fala de morrer para sim mesmo e viver para o próximo, Filipenses 1.20-24:
20Minha grande expectativa e esperança é que eu jamais seja envergonhado, mas que continue a trabalhar corajosamente, como sempre fiz, de modo que Cristo seja honrado por meu intermédio, quer eu viva, quer eu morra. 21Pois, para mim, o viver é Cristo, e o morrer é lucro. 22Mas, se continuar vivo, posso trabalhar e produzir fruto para Cristo. Na verdade, não sei o que escolher. 23Estou dividido entre os dois desejos: quero partir e estar com Cristo, o que me seria muitíssimo melhor. 24Contudo, por causa de vocês, é mais importante que eu continue a viver.
Segundo texto em que Paulo fala em morrer para si mesmo e viver para o próximo, 2Coríntios 5.14-15:
14De qualquer forma, o amor de Cristo nos impulsiona. Porque cremos que ele morreu por todos, também cremos que todos morreram. 15Ele morreu por todos, para que os que recebem sua nova vida não vivam mais para si mesmos, mas para Cristo, que morreu e ressuscitou por eles.
Ao dizer todas essas coisas, Paulo quis argumentar que sua identificação com Cristo na morte tornou possível para ele viver para Cristo e para o próximo (fazendo discípulos de Jesus, ensinando-os a guardar todas as coisas que o Senhor nos ordenou). Desse modo, seus valores eram os do reino do céu e não os do reino deste mundo.
Imagine como seria viver, quando não somos nós mesmos que vivemos, mas Cristo em nós pela fé; pense como seria você na escola [por que você estuda?], no trabalho [qual é o fim supremo do seu trabalho?], na família [como se constrói a harmonia?], na igreja [como se cumpre a grande comissão?] e na sociedade [como se obtém justiça social?]; imagine… A vida bem vivida, na prática, não funciona quando todos vivem, cada um, para si mesmo, seus prazeres, gostos ou desejos. A vida bem vivida, na prática, só funciona quando se pratica a contralógica cristã: a vida tem que morrer. É somente pela morte que nasce a vida.
A dificuldade com essa contralógica é que muitas vezes ela é abstrata. Ou, para colocar de outra forma, temos dificuldade em aplicá-la a nós mesmos, à nossa vida. Ouça (v. 24): “se o grão de trigo não for plantado na terra e não morrer, ficará só. Sua morte, porém, produzirá muitos novos grãos.”
Jesus sabia que simplesmente proferidas, elas por elas mesmas, essas palavras ficariam vagas. Então, suas próximas palavras fazem a aplicação. Ele havia falado sobre um grão de trigo. Agora ele diz (v. 25): “Quem ama sua vida neste mundo a perderá. Quem odeia sua vida neste mundo a conservará por toda a eternidade [para a vida eterna].”
A característica mais interessante deste versículo é que ele contém um contraste que não é aparente na tradução para o português. Lemos (v. 25): “Quem ama (depois, quem odeia) sua vida neste mundo…”, e depois se lê que ele a conservará “para a vida eterna”. O problema é que para nós não há como dizer que as duas primeiras palavras “vida” [neste mundo] e a terceira palavra “vida” [eterna] são diferentes na língua grega. No entanto, este é o cerne do que o versículo está dizendo.
As duas primeiras palavras veem de ψυχη (psuche), e se refere à vida da mente. Chamamos isso de ego. Significa a personalidade humana que pensa, planeja o futuro e traça seu curso. Jesus está dizendo que é isso que deve morrer. Em outras palavras: a vontade independente do homem deve morrer, para que o discípulo de Cristo submeta ativamente sua vontade a ele, seu Salvador e Senhor.
A outra palavra é ζωη (zoe), que, quando associada ao adjetivo “eterno”, significa vida divina. Todo cristão tem agora essa vida eterna ou divina pelo Espírito, mas ele a terá em sua plenitude somente quando toda a sua personalidade com todos os seus gostos e desejos forem colocados aos pés de Cristo. É quase a mesma coisa dizer que o cristão experimentará a plenitude das bênçãos de Deus apenas quando, consciente e deliberadamente, caminhar no caminho do Calvário.
George Müller pode bem servir de exemplo neste ponto. Ele viveu na Inglaterra há várias gerações e fundou muitos orfanatos, mantendo-os exclusivamente através da oração. Ele foi extremamente eficaz. Uma vez, quando questionado sobre o segredo de seu serviço bem-sucedido, ele respondeu:
Houve um dia em que morri – morri para George Müller, suas opiniões, preferências, gostos e vontades; morri para o mundo, sua aprovação ou censura; morri para a aprovação ou culpa da parte de meus irmãos ou amigos; e desde então tenho me dedicado apenas a me apresentar aprovado a Deus.
Perder sua própria vida para ganhá-la para a vida eterna não significa que você deverá fazer as mesmas coisas que Müller fez, ministerialmente falando. Significa, no entanto, que você deverá se dispor a fazer qualquer coisa por Cristo, segundo a direção dele – i.e., vocação, chamado. Também não significa que será uma vida triste e sombria. Não pense assim. O triste é desobedecê-lo. Obedecer é uma alegria. Lembre-se de que foi “por causa da alegria que o esperava, [que Jesus] suportou a cruz sem se importar com a vergonha” (Hb 12.2).
Na prática, a contralógica cristã diz: o cristão, assim como foi com Cristo, tem que morrer (v. 24); ele tem que fazer morrer seu ego, sua vontade emancipada de Deus, tem que mortificar a carne e os desejos mundanos (v. 25). Tudo isso para se atender ao convite de Cristo (v. 26): “Se alguém quer ser meu discípulo, siga-me… sirva-me”. Essa é a única vida que glorifica a Deus (v. 23).
Como nós podemos segui-lo e servi-lo?
Em Marcos 8.34 nós ouvimos de Jesus que segui-lo significa, essencialmente, duas coisas: negar a si mesmo e tomar a sua cruz. Portanto, o que significa negar a si mesmo? O que significa tomar a sua cruz?
TOMAR A SUA CRUZ: A cruz era um instrumento de execução. Nos dias de Jesus a crucificação era uma aplicação oficial da lei pelo Estado. Em outras palavras: o condenado era oficialmente visto e tratado como um criminoso da pior espécie. Outra coisa: o crucificado sofria uma execução vergonhosa, posto que ele era despido e ficava praticamente nu (ou nu de fato) diante dos olhos das pessoas, era xingado e humilhado publicamente. Era também uma morte muito dolorosa, carregada de sofrimentos (físicos e emocionais – pense na humilhação). Portanto, quem tomava a cruz, estava sob sentença, era humilhado, sofria excruciantemente e, por fim, morria.
Seguir Jesus significa tomar a cruz: estar disposto a se submeter ao sentenciamento das pessoas (em alguns contexto, sentenciamento oficial contra a fé cristã); estar disposto a ser humilhado e envergonhado pelo que se crê e professa; estar disposto a sofrer todo tipo de dores; e, por fim, estar disposto a morrer por Cristo e o evangelho (cf. Mc 8.35).
NEGAR A SI MESMO: O si mesmo, o eu, ou a pessoa que toma a cruz, naturalmente se opõe a tudo o que tomar a cruz significa. Opõe-se ao sentenciamento das pessoas. Corre da vergonha e da humilhação. Evita a todo custo o sofrimento. Foge da morte. De fato, busca a honra. É assim que todos nós somos, por natureza – ególatras. Negar a si mesmo, portanto, significa dizer: “Não, senhor eu mesmo, eu sei que você não gosta dessas coisas (oposição, vergonha, humilhação, dor e morte), mas eu estou dizendo não a você, senhor eu mesmo!” Nas palavras do salmista — “Não a nós, SENHOR, não a nós, mas ao teu nome dá glória” (Sl 115.1, ARA).
Seguir Jesus significa ter o novo homem, pelo Espírito Santo, dizendo não ao velho homem em constate processo de santificação: ter o novo homem dizendo e agindo de maneira a atestar que ele deseja mais de Jesus e da glória do evangelho do que ele deseja se ver livre de oposição, vergonha, humilhação, dor e morte. Agostinho colocou muito bem em palavras o maravilhoso paradoxo do que significa negar a si mesmo:
Se você ama a sua alma, há grande perigo de ela ser destruída. Portanto, você não deve amá-la, já que você não quer que ela seja destruída. Mas em não querer que ela seja destruída você a ama.
Trocando em miúdos: há uma batalha constante no coração do cristão. O velho homem se levantando, e o novo homem o mortificando, escolhendo Cristo, evangelho, salvação e vida, mesmo que ao custo de oposição, vergonha, humilhação, dor e morte. Negar a si mesmo, odiar a vida neste mundo, é a única maneira de preservarmos a vida eternamente.
Servir Jesus
O que significa servir Jesus, uma vez que ele mesmo declarou que “não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate por muitos” (Mc 10.45)? Bem, noutra passagem bíblica, ele deixou muito claro como ele espera ser servido por nós – na medida em que nós mesmos nos entregamos para o resgate, a salvação de muitos. Mateus 25.40:
‘Eu lhes digo a verdade: quando fizeram isso [matar a fome, saciar a sede, abrigar, vestir o corpo, visitar na prisão – cf. Mt 25.34-39] ao menor destes meus irmãos, foi a mim que o fizeram’.
Servir Jesus significa, uma vez tendo negado meu desejo natural de viver para mim mesmo, meus luxos e caprichos, eu me doo para o bem do meu próximo. Pense no significado prático disso para: pais, filhos, profissionais. Garis não trabalhariam da mesma forma. Médicos seriam diferentes. Pais e mães redescobririam o significado de criar filhos. Estudantes se dedicariam melhor ao estudo e escolheriam melhor a profissão. Etc.
Como nós precisamos da contralógica cristã neste mundo tão eucentrado! Precisamos ouvir e atender ao convite de Jesus: negue-se a si mesmo e me sirva. Essa é a única maneira de preservarmos a vida, a vida eterna.
É contralógica a mensagem de Jesus: morrer para frutificar; odiar a vida para amá-la de verdade; perder a vida para preservá-la. Como assim? É contralógica a mensagem cristã porque nos faz viver a vida olhando para acima do sol; reorienta nossos valores – o foco é a glória de Cristo e o bem do meu próximo no evangelho.
Repetindo o que já dissemos: Não é fácil o chamado cristão, mas é glorioso. Portanto, não perca a glória e a alegria transbordantes nesta vida difícil de se ser um cristão:
Nós morremos; odiamos nossa vida neste mundo; seguimos Jesus no caminho ao Calvário; e nos tornamos servos. E quando assim o fazemos, o que descobrimos é que frutificamos abundantemente – tornamo-nos melhores pais, melhores cônjuges, melhores filhos, melhores políticos, melhores profissionais; preservamos a vida para a vida eterna; juntamo-nos a Jesus no caminho do discipulado e até a glória no céu; por fim, o Pai nos honrará.
A presença de Jesus conosco e a honra que receberemos do Pai é o que nos motiva a morrer para este mundo, para o eu e nos entregarmos para Cristo, o evangelho e meu próximo.
Em um de seus sermões, Charles Spurgeon imagina como será a honra que o crente receberá do Pai. Ele descreve um caso em que um príncipe e o servo do príncipe caem nas mãos de bandidos, que prendem em cativeiro o príncipe como resgate. As negociações do resgate atrasam-se e, nesse ínterim, a vida vai muito mal para quem tem sangue nobre e, claro, também para o servo. O príncipe adoece. O servo cuida dele. O servo enxuga a testa febril de seu mestre e lhe dá água fria para beber. Chega um ponto em seu cativeiro em que o servo, que está bem e saudável, encontra uma oportunidade de escapar; mas ele declina, preferindo permanecer com o seu senhor. Finalmente, o paradeiro do príncipe é descoberto, e tanto o príncipe quanto o seu companheiro são resgatados.
— Agora — pergunta Spurgeon — quem é o homem a quem o rei tem prazer em homenagear? Claramente, é o servo. “Pois”, diz o Rei, “este é o homem que estava com meu filho na prisão, que cuidou dele, que o tratou, atendeu, alimentou e hidratou quando ele estava perto da morte. Ele estará, portanto, com meu filho e receberá com ele toda a honra, acima até da do maior estadista do reino.”
Da mesma forma, Jesus nos diz que Deus honrará aqueles que o seguem e o servem nesta vida. Neste mundo, seu caminho frequentemente envolverá sofrimento. Às vezes, envolverá a morte por causa de Cristo e do evangelho. Sempre envolverá autonegação. Mas, diz Cristo, o sofrimento será seguido pela honra, e a autonegação, pelo louvor.
Você consegue ouvir? Acho que ouço a voz do Rei:
— Afastem-se, anjos! Abram espaço, serafins! Deixem livre o caminho! Pois eis que vem o homem, eis que vem a mulher, eis que entram a criança, o adolescente, o jovem, o adulto e o idoso que estavam com meu Filho; eis que entram aqueles que viveram a contralógica cristã – negaram a si mesmos, tomaram a sua cruz, seguiram o meu Filho e o serviram. Agora eu os honrarei. Venham, servos bons e fiéis, entrem para o descanso do seu Senhor, subam ao trono. Aqui, pegue esta coroa, e sentem-se ali com meu Filho e reinem com ele para sempre. Vocês são vitoriosos: darei a vocês o fruto da árvore da vida que está no paraíso de Deus (Ap 2.7); não sofrerão o dano da segunda morte (Ap 2.8); darei a vocês do maná escondido, também lhes darei uma pedra branca, e nela estará gravado um nome novo, que ninguém conhece, a não ser vocês que o receberam (Ap 2.17); darei a vocês autoridade sobre as nações (Ap 2.26); vesti-los-ei de branco, jamais apagarei o nome de vocês do Livro da Vida e confirmarei que vocês me pertencem; (Ap 3.5); torná-los-ei coluna de meu templo, de onde jamais sairão, escreverei em vocês o meu nome, e vocês serão cidadãos da minha cidade, a nova Jerusalém que desce do céu (Ap 3.12); sentarão comigo e com meu Filho no trono, vitoriosos para sempre (Ap 3.21). Pois estiveram com meu Filho na oposição, vergonha, humilhação, dor e morte que sofreu. Venham, pois, venham celebrar comigo as bodas do Cordeiro.
Ô meu Deus! Queira o SENHOR que isso possa um dia ser verdade para todos nós que verdadeiramente invocamos o nome de Jesus Cristo.
Qual é a lógica que guia você?
Não se engane, a única maneira de você preservar a vida é seguindo a contralógica cristã.
S.D.G. L.B.Peixoto
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