22.11.2020
[Romanos 3.28] Portanto, somos declarados justos por meio da fé, e não pela obediência à lei.
O brasileiro é um povo de fé: 99% de todos nós diz ter fé, e desses, 90% diz ter uma religião. A revista Gente, do grupo Globo, em maio deste ano, apontou que 146 milhões da nossa pátria afirmaram ter uma religião. Desse modo, hoje, as religiões dos brasileiros se dividem da seguinte forma:
Em nossa cidade, por exemplo, 38% se declara católico e 34% se declara evangélico. Entre os 34% de evangélicos em Goiânia (693 mil), 57% é pentecostal, 12% é neopentecostal, 9% é protestante (históricos ou tradicionais: 62.370), 5% é adventista / testemunha de Jeová, e 17% outros grupos. Sobre esse emaranhado de diferentes matrizes evangélicas, a revista Gente declarou:
A religião [evangélica] se caracteriza por uma complexa ramificação de igrejas, templos e pastores com diferentes práticas e leituras do evangelho. É importante compreender a religião evangélica, suas diferentes denominações e contexto local.
A revista ainda afirma – e não creio que discordaríamos – que “a fé é o principal valor do brasileiro”. Por que é assim? Eis o que justificou a matéria:
Num contexto de esgarçamento [espaçamento] social e ausência do estado, para acreditar em si e ser capaz de seguir adiante, o brasileiro se apoia na fé [fico pensando: quer dizer que se houvesse estado presente não haveria fé? estado substitui religião? Como se diz, Freud explica!]. Está diretamente ligada à nossa cultura, é uma forma de expressão social e uma forma de pertencer. Funciona como uma rede de apoio e segurança tanto para as questões mais cotidianas quanto as mais existenciais.
Afinal, que é fé?
“Fé”, disse a revista Gente, é uma “experiência individual, atua como uma força positiva. Transcende a materialidade, refúgio emocional. Mecanismo de estabilidade para instantes de dificuldade, dor e sofrimento. Tendência constante do ser humano de confiar.”
Essa confusão a respeito do significado de fé não é uma tragédia que acometeu apenas a sociedade ao redor ou o Grupo Globo, atingiu também, em cheio, a todos nós evangélicos.
Fé! Somente a fé!
Digam-me, que igreja evangélica negaria que tudo é “somente pela fé”?
Assim afirmam, no entanto, sem saber o que é fé, biblicamente falando, ou não crendo de fato que é “somente pela fé”. Ora, uma igreja que afirma que é “pela graça somente, em Cristo somente e por recebimento em fé somente” que o ser humano é revivido e salvo em Cristo, posto que estamos mortos no pecado em nosso estado natural; é também pela graça somente, em Cristo somente e por recebimento em fé somente que Deus se volta 100% para o pecador, tornando-o justo, justificando-o… ora, uma igreja que afirma essas coisas não pode achar que algum sistema litúrgico mecânico ou mágico ou supersticioso possa, de fato, conferir salvação. Se é pela fé somente, então é somente pela fé. Mas na prática não é o que se vê por aí.
É bem verdade que a fé é consequente – ou seja: fruto da graça ou como resultado da graça que nos faz nascer de novo, agimos com fé –, mas é também verdade que só é pela fé porque também o é pela graça. Não é pela fé na fé, mas somente pela fé, em Cristo somente, possibilitada (a fé) somente pela graça.
A Igreja Evangélica brasileira comete pelo menos dois erros crassos no que diz respeito à fé.
De um lado, a alma ainda católica romana do brasileiro o faz crer que a salvação é por algum tipo de obras: usos e costumes, tradicionalismos, cumprimento de regras institucionais e ou morais, campanhas, pagamento de um alto preço de consagração ou a fé mesma como obras (resultado da força de vontade do crente). De outro lado, o resquício da alma também pagã do brasileiro, faz da “fé evangélica” algo supersticioso, até mesmo pagão (a julgar por algumas crenças e práticas); é fé na fé, para se dizer o mínimo.
A crise do protestantismo brasileiro se apoia em um tripé de erros, todos relacionados à fé; ou seja, o nosso problema central está ligado à causa, ao objeto e à consequência da fé – a causa da fé (como e por que temos fé, qual é sua causa?), o objeto da fé (em quem ou em quê se tem fé, qual é o objeto da fé?) e a consequência da fé (o que se resulta da fé, quais as consequências práticas da fé de alguém?). Percebeu?
Entre nós brasileiros, a fé, certamente, não está em crise: 99% dos brasileiros tem fé. O nosso problema, portanto, não é ausência ou mesmo a diminuição da fé. A questão é mais profunda, está relacionada à causa, ao objeto e à consequência da fé. A fé do brasileiro (mesmo entre evangélicos) é uma fé cuja a causa é o ser humano mesmo, o objeto é a si mesmo ou algum deus criado, e a consequência é nula (afinal, em uma cidade como a nossa, onde 34% se diz evangélica e 38% se diz católica, que diferença isso faz, me diga?). Biblicamente falando, a fé do brasileiro é morta. Portanto, não é fé coisa nenhuma. Os números e o estado das coisas comprovam.
Olhando para a Bíblia, a causa da fé é a graça de Deus, o objeto da fé é a vida e a obra de Jesus Cristo e a consequência da fé é uma vida de arrependimento, discipulado e novidade de vida. Tudo isso se verifica em apenas um parágrafo do apóstolo Paulo, Efésios 2.4-10:
4Mas Deus é tão rico em misericórdia e nos amou tanto 5que, embora estivéssemos mortos por causa de nossos pecados, ele nos deu vida juntamente com Cristo. É pela graça que vocês são salvos! 6Pois ele nos ressuscitou com Cristo e nos fez sentar com ele nos domínios celestiais, porque agora estamos em Cristo Jesus. 7Portanto, nas eras futuras, Deus poderá apontar-nos como exemplos da riqueza insuperável de sua graça, revelada na bondade que ele demonstrou por nós em Cristo Jesus. 8Vocês são salvos pela graça, por meio da fé. Isso não vem de vocês; é uma dádiva de Deus. 9Não é uma recompensa pela prática de boas obras, para que ninguém venha a se orgulhar. 10Pois somos obra-prima de Deus, criados em Cristo Jesus a fim de realizar as boas obras que ele de antemão planejou para nós.
Precisamos de uma nova reforma, nova não na mensagem, nova no sentido de reafirmarmos o antigo evangelho neste mercado de opções, neste velho mundo de tantas “leituras diferentes do evangelho”. Nosso mundo, meu povo, não é novo – não estamos ainda no novo mundo (o novo céu e a nova terra ainda descerá do céu da parte de Deus, no dia do SENHOR, cf. Ap 21). Não precisamos, portanto, de cartas para um novo mundo (i.e., cartas antigas que se adaptam ao novo). Nosso mundo é o mesmo velho mundo do pecado. Precisamos, sim, de cartas do novo mundo (i.e., cartas do novo mundo anunciado pelos profetas, o Cristo e os apóstolos para a restauração desse velho mundo do pecado). É isto o que estamos buscando nesta série de mensagens Os Solas da Reforma Protestante: a mensagem do novo mundo exposta nas Escrituras e sistematizada pela Reforma Protestante para este velho mundo do pecado que precisa de restauração, renovação de fato e de verdade.
O evangelho, tal como nós o recebemos dos apóstolos, é o que verdadeiramente resolve os nossos principais problemas; ou seja, nascer de novo espiritualmente (ou reviver em Cristo, posto que estamos mortos no pecado em nosso estado natural) e Deus se voltar 100% a nós para sempre (sermos justificados diante de Deus) se dá…
Tendo apresentado, nas três primeiras mensagens da série, O Antigo Evangelho (1/11), o significado de Somente a Graça (1/11) e o significado de Somente Cristo (hoje pela manhã), debruçaremos, a seguir, no significado de Somente a Fé.
Antes de buscarmos o significado de somente a fé, precisamos, primeiro, entender o que é fé.
O que é fé?
A Bíblia responde em Hebreus 11.1 (NVT) que “a fé mostra a realidade daquilo que esperamos; ela nos dá convicção de coisas que não vemos.” A Almeida Revista e Atualizada traz assim: “Ora, a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não veem.” Já a Nova Versão Internacional assim traduz: “Ora, a fé é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos.”
Portanto, biblicamente falando, fé
Agora, cuidado, muito cuidado com essa definição assim isoladamente! Por quê?
Pare e pense por um instante: o que diferencia essas duas afirmações bíblicas do poder do pensamento positivo – ouça, mais uma vez, “certeza de coisas que esperamos; “convicção de coisas que não vemos”? Que diferença há entre isso e pensamento positivo? Ou não há diferença?
Outra coisa muito séria: assim posto, apenas o recorte (Hb 11.1) – ou seja: fé é “certeza de coisas que esperamos [que aconteçam]” e a “convicção de coisas que não vemos [mas aconteceu ou vai acontecer]” – , nu e cru como está, seja honesto!, não se fica com a impressão de que fé é uma confiança cega diante de evidencias contrárias? Ou ainda: sem qualificações para esta definição, não se pode concluir que fé é um incompreensível “salto no escuro”?
Ora, essa definição de fé em nada se difere de uma fé pagã ou secular (desprovida do sagrado). Não se precisa de Deus para se ter fé na fé, fé no poder do pensamento positivo, fé em si mesmo, fé como confiança cega diante de evidências contrárias, fé como um incompreensível “salto no escuro”. Esse tipo de fá, ainda que comum mesmo entre “evangélicos” não precisa de Deus.
Para biblicamente entendermos o quê de fato é fé e para quê a fé, precisamos do contexto imediato de Hebreus 11.1. Ouça o que o autor escreveu previamente, Hebreus 10.32-39
32Lembrem-se dos primeiros dias [de como vocês eram perseverantes, firmes e constantes na obra do SENHOR], depois que vocês foram iluminados, quando suportaram muita luta e muito sofrimento. 33Algumas vezes vocês foram expostos a insultos e tribulações; em outras ocasiões fizeram-se solidários com os que assim foram tratados. 34Vocês se compadeceram dos que estavam na prisão e aceitaram alegremente o confisco dos seus próprios bens, [como foi possível tudo isso?] pois sabiam [tinham fé] que possuíam bens superiores e permanentes. 35Por isso, não abram mão da confiança que vocês têm [perseverem na fé]; ela será ricamente recompensada. 36Vocês precisam perseverar, de modo que, quando tiverem feito a vontade de Deus, recebam o que ele prometeu [i.e., Hb 13.5: “Nunca o deixarei, nunca o abandonarei” até que vocês cheguem à “pátria melhor ou superior, isto é, a pátria celestial”, Hb 11.16]; [outra promessa:] 37pois em breve, muito em breve “Aquele que vem virá, e não demorará. 38Mas o meu justo viverá pela fé. E, se retroceder, não me agradarei dele”. 39Nós, porém, não somos dos que retrocedem e são destruídos, mas dos que crêem e são salvos.
Que é fé?
Fé são as mãos que se estendem para receber o tesouro: Cristo. Fé são as correntes e a âncora que nos prendem para não naufragarmos no caminho até à pátria superior (Hb 6.19: “Essa esperança é uma âncora firme e confiável para nossa alma. Ela nos conduz até o outro lado da cortina, para o santuário interior.”). Precisamos da fé bíblica, uma vez que tudo nessa vida, por causa da natureza do pecado em nós que nos faz ver e desejar mais qualquer coisa à Deus mesmo (Hb 13.5-6):
5Não amem o dinheiro; estejam satisfeitos com o que têm. Porque Deus disse: “Não o deixarei; jamais o abandonarei”.6Por isso, podemos dizer com toda a confiança: “O Senhor é meu ajudador, portanto não temerei; o que me podem fazer os simples mortais?”.
Fé não é o meio para eu obter dinheiro e reputação, por exemplo. Fé é o antídoto contra o amor ao dinheiro e o temor do homem, que tanto podem nos escravizar e nos matar. Desse modo, fé é aquilo pelo que o justo vive para não retroceder ao pecado e à destruição, fé é o que nos impede de sermos condenados na destruição do pecado, fé (em Cristo somente) é o que nos salva para a vida eterna. Aí sim, nesse sentido, na sequência do texto (Hb 11.1-3):
1A fé mostra a realidade daquilo que esperamos [a pátria superior e melhor, o céu , v. 10]; ela nos dá convicção de coisas que não vemos [a presença do SENHOR conosco – a nossa realidade escondida em Cristo, cf. Cl 3.1-4]. 2Pela fé, pessoas em tempos passados obtiveram aprovação [não retrocederam, antes, foram salvas – por enxergarem a realidade daquilo que esperavam: o descanso celestial]. 3Pela fé, entendemos que todo o universo foi formado pela palavra de Deus; assim, o que se vê originou-se daquilo que não se vê [assim como a Palavra que não vemos criou o mundo que enxergamos – olhamos para o mundo e dizemos: foi Deus quem criou –, assim também instruídos pela Palavra, sabemos que o SENHOR está conosco em toda e qualquer circunstância, tornando todas as coisas em bem para nos salvar e santificar; pela fé nós temos a convicção do que não vemos: propósito, sentido, o SENHOR conosco.]
A Bíblia de Estudos NAA traz a seguinte nota de comentário para esses versículos:
Ao definir fé (gr. pistis) como “certeza” e “convicção”, o autor mostra que a fé bíblica não é uma vaga esperança fundamentada em ficção ou no pensamento positivo. Em vez disso, fé é uma firme confiança de que algo no futuro – algo que ainda não é visto, mas que foi prometido por Deus – realmente acontecerá porque a vontade de Deus o efetuará. Portanto, a fé bíblica não é uma confiança cega diante de evidências contrárias, nem um incompreensível “salto no escuro”; antes, a fé bíblica é uma confiança segura no Deus eterno, que é todo-poderoso, infinitamente sábio e eternamente digno de confiança – o Deus que se revelou em sua palavra e na pessoa de Jesus Cristo, cujas promessas se mostraram verdadeiras de geração em geração, e que jamais abandonará os seus (13.5). Esta fé nas realidades invisíveis de Deus é enfatizada ao longo de todo o cap.11 (p. ex., 11.7-8; cf. v. 3) e tem proporcionado confiança e certeza a todos que recebem Cristo como seu Senhor e Salvador.
John Piper, pregando em Hebreus 11.1-3, concluiu assim a mensagem:
Em resumo, a fé é uma espécie de degustação espiritual do que Deus prometeu, de modo que sentimos uma garantia profunda e substancial das coisas que esperamos; e a fé é uma espécie de visão espiritual das impressões digitais invisíveis de Deus nas coisas que ele fez [e faz]. Pela qual nós obtemos o conhecimento do poder e da sabedoria de Deus para nos criar, e também [pela qual] conhecemos sua bondade e graça para nos salvar.
Isto é fé, biblicamente falando: fé são as mãos que se estendem para receber o tesouro: Cristo, são as correntes que nos ancoram para não naufragarmos no caminho até à pátria superior, é o prazer do coração [“a degustação espiritual”] que provou e viu que Deus é bom, muito bom.
Passemos agora ao significado de somente a fé.
S.D.G. L.B.Peixoto
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Pr. Leandro B. Peixoto