11.04.2021
[Salmo 88] Ao regente do coral: salmo dos descendentes de Corá, para ser cantado com a melodia “O sofrimento da aflição”. Salmo de Hemã, o ezraíta. 1Ó SENHOR, Deus de minha salvação, clamo a ti de dia, venho a ti de noite. 2Agora, ouve minha oração; escuta meu clamor. 3Pois minha vida está cheia de problemas, e a morte se aproxima. 4Fui considerado morto, alguém que já não tem forças. 5Deixaram-me entre os mortos, estendido como um cadáver no túmulo. Caí no esquecimento e estou separado do teu cuidado. 6Tu me lançaste na cova mais funda, nas profundezas mais escuras. 7Tua ira pesa sobre mim; uma após a outra, tuas ondas me encobrem. Interlúdio 8Afastaste de mim os meus amigos e para eles me tornaste repulsivo; estou preso numa armadilha, e não há como escapar. 9As lágrimas de aflição me cegaram os olhos; todos os dias, clamo por ti, SENHOR, e a ti levanto as mãos. 10Será que tuas maravilhas têm algum uso para os mortos? Acaso os mortos se levantam e te louvam? Interlúdio 11Podem os que estão no túmulo anunciar teu amor? Podem proclamar tua fidelidade no lugar de destruição? 12Acaso as trevas falam de tuas maravilhas? Pode alguém na terra do esquecimento contar de tua justiça? 13A ti, SENHOR, eu clamo; dia após dia, continuarei a suplicar. 14Ó SENHOR, por que me rejeitas? Por que escondes de mim o rosto? 15Desde a juventude estive doente e à beira da morte; teus terrores me deixaram indefeso e desesperado. 16Sim, tua ira intensa me esmagou, teus terrores acabaram comigo. 17O dia todo, agitam-se ao meu redor como uma inundação e me encobrem por completo. 18Tiraste de mim meus companheiros e pessoas queridas; a escuridão é a minha amiga mais chegada.
Você escolheria assistir um filme ou ler um livro sabendo que o final não será feliz? A maioria de nós, imagino, diria que não. A vida já é triste demais, dizem por aí! E outra: quem não gosta de um final feliz, arrebatador, com resolução e risada? Talvez seja por isso que ação e aventura, bem como comédia romântica estejam entre os top cinco dos gêneros mais assistidos pelas pessoas. Sim, há também o drama (se não me engano, em segundo lugar na lista dos mais assistidos, atrás de ação e aventura), mas o drama sempre com algum final feliz. É da nossa natureza: a gente gosta e torce por finais felizes.
O salmo que nós temos em tela é sem final feliz. Derek Kidner, entre os estudiosos bíblicos mais respeitados, abre seu comentário neste salmo com a seguinte frase: “Não há oração mais triste no Saltério.” H. C. Leupold, outro comentarista bastante consultado, escreveu: “É o salmo mais melancólico encontrado nas Escrituras”, e acrescentou: “o salmista está tão profundamente atribulado quando concluiu sua oração quanto estava quando a iniciou”. J. J. Stewart Perowne, pastor e teólogo anglicano, anotou: “Este é o Salmo mais sombrio e triste de todo o Saltério. É um lamento de tristeza do começo ao fim.” É verdade! Ouça mais uma vez a conclusão do salmista, versículos 18:
Tiraste de mim meus companheiros e pessoas queridas; a escuridão é a minha amiga mais chegada.
Não tem como negar, é o mais depressivo dos salmos. Não há uma nota de alento sequer, apenas queixas e argumentos, do início ao fim. Os demais salmos costumam começar com lamento e terminar com louvor pelo livramento. Este termina negativamente, sem final feliz, fúnebre. Na versão ARA, seguindo a composição do texto hebraico original, a última palavra é “trevas” [מחשׂךְ – machshak – i.e., trevas, escuridão, sepultura].
Se é sem final feliz, como podemos aprender algo do Salmo 88?
É bom que se tenha pelo menos um salmo assim no Saltério, pois tantas vezes nossos vales de escuridão, dor e sofrimento não têm alívio e são sem finais felizes. Pergunte ao filho chegando à pré-adolescência, por exemplo, que ora incessantemente pela cura do câncer da mãe, mas no final amarga a dor aguda da perda. Este foi o caso de C. S. Lewis, um dos maiores pensadores e escritores cristãos do século XX.
Lewis foi confrontado com a morte desde muito cedo, quando tinha nove para dez anos de idade, por ocasião do falecimento de sua mãe – vítima de câncer –, em 1908. Isso o deixou muito revoltado com Deus, pois ele, que havia aprendido a fazer suas orações desde pequenino no seu lar cristão protestante, havia orado para que Deus a curasse miraculosamente. Mas ela morreu. Mais tarde, um amigo de guerra também morreu no front da Primeira Guerra Mundial. Depois foi a vez do pai morrer, quando Lewis contava 31 de vida. Por fim, sua amada esposa Joy, que foi a morte mais dolorosa de todas, cujo luto é retratado com todas as cores em Anatomia de uma Dor (ed. Vida) – essa história está no filme Terra das Sombras, em que Anthony Hopkins faz o papel de Lewis. Trocando em miúdos: C. S. Lewis, gênio da apologética e da literatura cristã, como tantos de nós mortais comuns, amargou uma sucessão de acontecimentos sem finais felizes.
Sejamos honestos: nós sabemos reagir aos finais felizes, mas somos péssimos em lidar com ocasiões ou acontecimentos sem finais felizes, sobretudo quando experimentamos cadeia interminável de dolorosos dissabores. No entanto – e eu não precisaria lhe dizer isto –, a vida, por causa da queda no pecado, está repleta de longos períodos sombrios, dolorosos e solitários, e cujo desfecho é sem final feliz. Do menino que não tem a oração atendida e testemunha a morte da mãe, passando pela mulher que amarga o casamento cheio de conflitos e que de modo lamentável chega ao ponto do divórcio, passando por aqueles que sofrem com enfermidades incuráveis ou com conflitos sem trégua e tudo o mais, até chegar ao idoso solitário e sem recursos para bancar os diversos problemas de saúde. Isto, veja bem, quando não se soma a tudo o enfrentamento daquele tipo de depressão que te faz enxergar a vida em tons de preto e branco, tons de cinza. É muito doloroso! E por isso o Salmo 88 é de suma importante para a espiritualidade cristã.
Em 1911, o então almirante Winston Churchill escreveu para sua esposa, relatando:
Acho que um médico pode ser útil para mim se o cachorro preto voltar. Ele parece estar distante agora, o que é um alívio. Todas as cores voltam à vida.
Ora, estaria Churchill, futuro primeiro-ministro britânico e aclamado herói da Segunda Guerra Mundial, falando em códigos sobre alguma missão ultrassecreta? Não! “Cachorro preto” era uma metáfora para “depressão”, da qual Churchill sofria longas e duras crises. Era comum para ele reclamar de ser seguido de perto pelo tal “cachorro preto da depressão”. Era tanto que, mais tarde, ele relataria ao seu médico:
Eu não gosto de ficar perto da borda de uma plataforma quando um trem expresso está passando… Eu gosto de ficar mais para trás e, se possível, com uma pilastra entre mim e o trem. Não gosto de ficar na borda de um navio olhando para a água. A ação de um segundo acabaria com tudo. Algumas gotas de desespero.
Esse “cachorro preto” de tristeza e desespero o perseguiria por toda a vida. Churchill, no entanto, é somente um dos nomes de uma lista interminável de personalidades com o ponto comum da depressão em suas biografias: Charles H. Spurgeon, William Cowper, Vincent Van Gogh, Abraham Lincoln, Albert Einstein, Charles Darwin, Martin Luther King Jr., Santos Dumont e tantos outros famosos também penaram com esse transtorno tenebroso em algum momento da vida. — Quer saber de uma coisa? A maioria deles, se não todos, morreu sem ver a luz raiar naquela escuridão de dores na alma (e no corpo, tantas vezes).
E você? A escuridão não passa para você?
Definitivamente, a vida não é feita só de dias ensolarados, céus azuis sem nuvens e finais felizes. E por isso é importante um salmo como este no Saltério. É uma luz na escuridão. Derek Kidner escreveu assim sobre o nosso texto:
Não há oração mais triste no Saltério. Aqui, como em outros lamentos, a parte do leitor não precisa ser a de espectador, qualquer que seja seu humor momentâneo, mas a de companheiro em oração para as pessoas deprimidas ou rejeitadas cujo estado de espírito o salmo coloca em palavras: palavras que são para uso.
Que maravilha esta colocação à respeito do Salmo 88! Só quem passa pela indescritível tristeza de finais não felizes sabe o quanto nos faltam palavras para nos expressarmos e até para orarmos a Deus. Este salmo, portanto, é para quem está sem saber como lidar com a vida sem finais felizes e sem saber como se expressar. O Salmo 88 é uma luz na escuridão.
Outro sentimento que nos acomete, especialmente quando colecionamos acontecimentos ou circunstâncias sem finais felizes, é o de não estarmos prestando para mais nada – o sentimento de fracasso irremediável! Isto porque é muito comum a gente pensar em termos de atuação, produção, contribuição ou edificação apenas quando estamos bem, ou nos sentindo bem, ou sendo atendidos por Deus em todos os nosso pedidos e desejos. Este salmo, no entanto, revela que é plenamente possível produzirmos algumas das peças ou das obras mais maravilhosas, ou realizarmos os gestos mais edificantes precisamente por causa da coleção de sucessivas experiências sem finais felizes. Ouça o que escreveu Derek Kidner à respeito da atitude do salmista:
Se houver qualquer fagulha de esperança no próprio salmo, o título fornece-a [como veremos], pois este autor supostamente esquecido por Deus parece ter sido um dos pioneiros do grupo de compositores de salmos e cantos fundado por Davi, ao qual devemos os salmos denominados “dos descendentes de Corá”, um dos mais ricos veios do Saltério. Por mais que estivesse sobrecarregado e depressivo, sua existência estava longe de ser inútil. Se foi uma vida de morto-vivo, nas mãos de Deus ela produziu muitos frutos.
Temos, pois, neste salmo: [1] palavras que nos servem de vocabulário nos momentos mais sombrios, quando a alma sente e a boca não tem o que dizer ou não sabe como se expressar, e [2] provas de que é possível colecionar inúmeros episódios sem finais felizes e desse modo glorificar a Deus e servir ao próximo em amor para a edificação. Assim, além de luz na escuridão que não passa, este salmo é estímulo ao que entregou ou está pensando em entregar os pontos.
Mas tem algo mais. Este salmo nos ensina a contrastar e corrigir as formas mais comuns para o enfrentamento dos problemas na vida – problemas inúmeras vezes profundos, intratáveis, irremediáveis e que nunca vão embora nesta vida. Face a esta realidade, tem havido pelo menos quatro respostas comuns ao problema do sofrimento.
PRIMEIRO, Há os que, influenciados pela espiritualidade oriental, costumam dizer aos que estão sofrendo irremediavelmente que sofrimento, dificuldade, dor… é tudo uma ilusão. E que se a pessoa apenas conseguisse abrir os olhos para a realidade, perceberia que, na verdade, não há sofrimento, não há dor, não há problemas. Muito do neopaganismo contemporâneo, revelado em filmes e séries, por exemplo, comprou essa ideia hindu ou budista de negação ou de que o sofrimento, a dor, a dificuldade é uma ilusão; de que se apenas fôssemos iluminados de algum modo, por algum conhecimento superior, tudo se dissiparia. Bem, isso é falso ensino. Nós sabemos disso, na prática. Vivemos em um mundo caído. Existem consequências para o pecado. O pecado trouxe consigo a miséria e, portanto, a dor não é irreal; é muito real o sofrimento e também são reais as situações sem finais felizes.
SEGUNDO, Há aqueles que lidam com o problema do sofrimento da seguinte maneira: se a pessoa tiver fé suficiente seus problemas acabarão. Esses dizem que – se alguém está sofrendo, frustrado, atribulado, dolorido e sendo provado em tudo na vida – o problema é que o indivíduo simplesmente não está confiando o bastante no Senhor. Isso é o que dizem os “super-crentes” do evangelho da saúde e da prosperidade (ou, como alguns preferem dizer, do evangelho que traz saúde e prosperidade), os pregadores do movimento “palavra da fé” que se propagaram pelo mundo, inclusive aqui em Goiânia. Pregam que se tivermos fé suficiente, tudo ficará bem, o final será feliz.
TERCEIRO, há a forma mais branda do falso ensino de que fé suficiente garante finais felizes, e que se expressa mais ou menos assim: o crente nunca fica sem resposta e seu sofrimento sem algum remédio. Novamente, sabemos que isto não é verdade. Pergunte a Jó se ele teve alguma resposta, pelo menos do ponto de vista que buscamos respostas. Não teve. Olhe para este nosso salmo. O salmista obteve resposta? Ele encontrou a cura? Também não. Pelo menos não da forma como comumente se busca resposta e cura e vitória.
QUARTO, face ao problema do sofrimento, há os que reagem de modo mais filosófico. Esses dizem mais ou menos assim: simplesmente não há resposta e, portanto, a resposta é perceber que não há resposta para o sofrimento; basta que se enfrente com coragem o sofrimento. Bem, essa também não é a mensagem do Salmo 88, porque mesmo neste salmo que termina na escuridão, existem, de fato, algumas respostas. Elas podem não ser todas as respostas que a Bíblia nos dá ou as que as pessoas gostariam de obter, mas existem respostas importantes aqui para o leitor atento e orante.
Portanto, o que faremos a seguir será olhar para este salmo e ver que tipo de respostas nós obtemos quando a escuridão não passa, quando o sofrimento não abranda, quando a dor não finda, quando o final não é feliz. Para tanto, dividiremos o salmo da seguinte maneira: [1] versículos 1-2: oração repetida; [2] versículos 3-9: coração rasgado; [3] versículos 10-12: ponderação realista; e [4] versículos 13-18: aflição recorrente. Examinaremos o salmo em cada um desses pontos e no final apontaremos alguns caminhos de esperança que podem ser achados nele; tudo à luz de outras verdades bíblicas que devem governar nossa atitude face a Deus quando a escuridão não passa.
O salmo inicia com o salmista basicamente clamando o seguinte: “Senhor, por favor, me ouça! Por favor, apenas me ouça!” Veja, preste atenção no que diz os versículos 1-2:
1Ó SENHOR, Deus de minha salvação, clamo a ti de dia, venho a ti de noite. 2Agora, ouve minha oração; escuta meu clamor.
Dito de outro modo: “Tenho clamado por tua ajuda, dia e noite eu o suplico, mas é como se o SENHOR não tivesse me ouvindo. Por favor, me ouça!” Está claro, portanto: o salmista orava, pedia, clamava e suplicava, mas sua petição, aparentemente, não estava sendo ouvida.
O que aprendemos?
Por vezes, até os crentes mais fervorosos sentem que seus clamores por ajuda e socorro podem não ser atendidos, e nessas circunstâncias precisamos ter cuidado para não agirmos como os amigos de Jó, e dizer à nos mesmos ou a alguém que está sofrendo que se não tivesse pecado ou que se arrependesse-se ou simplesmente confiasse mais em Deus, então tudo ficará bem.
Isto simplesmente não é verdade!
Há momentos em que crentes maduros se sentem como se suas orações não tivessem sido ouvidas e, felizmente, este salmo nos lembra dessa realidade. Se não fosse esse o caso, realmente haveria motivo para desespero. Se você estivesse passando por um período em que sua oração não está sendo ouvida e você pensasse que a Bíblia ensina que os verdadeiros crentes nunca passam por esses períodos, o que você pensaria de si mesmo? Entraria em desespero, óbvio! Ocorre que aqui está um crente piedoso, maduro, mas que ora, ora e ora e se sente como se seu Deus não o está ouvindo.
Quem era o salmista que fazia oração repetida aparentemente sem ser ouvido?
Nós lemos o nome dele no início. Este é um salmo endereçado Ao regente do coral: salmo dos descendentes de Corá, para ser cantado com a melodia “O sofrimento da aflição”. Salmo de Hemã, o ezraíta. Agora, você sabe quem era Hemã, o ezraíta? Ele foi um dos pioneiros do grupo dos coraítas no templo de Deus. Foi ele quem, sob Davi, montou um conjunto ou coral que nos legou uma série de salmos preciosos (salmos dos descendentes de Corá), e isto é o bastante para se concluir que não importa o quão escuro tenha sido este momento delongado em sua vida, ele era, em última análise, um homem que confiava em Deus, amava e adorava a Deus, amava o povo do SENHOR, liderava a adoração, tinha o desígnio de glorificar a Deus e desfrutá-lo para sempre.
Logo, não era por não ser piedoso que suas orações não eram respondidas. Por ser piedoso é que ele não parava de orar. Só faz oração repetida, só persevera em oração, mesmo que sem respostas, quem de fato crê! Essa verdade já é em si luz para os que estão na escuridão que não passa: não deixe de orar, falar com Deus, clamar com fé.
Em meio ao seu orar e orar e orar, Hemã rasgou seu coração a Deus – ele meio que listou o montante de problemas, descreveu a sensação sentida, desabafou a solidão e falou da profunda tristeza (rasgou seu coração) em suas orações repetidas, versículos 3-9:
3Pois minha vida está cheia de problemas, e a morte se aproxima. 4Fui considerado morto, alguém que já não tem forças. 5Deixaram-me entre os mortos, estendido como um cadáver no túmulo. Caí no esquecimento e estou separado do teu cuidado. 6Tu me lançaste na cova mais funda, nas profundezas mais escuras. 7Tua ira pesa sobre mim; uma após a outra, tuas ondas me encobrem. Interlúdio 8Afastaste de mim os meus amigos e para eles me tornaste repulsivo; estou preso numa armadilha, e não há como escapar. 9As lágrimas de aflição me cegaram os olhos; todos os dias, clamo por ti, SENHOR, e a ti levanto as mãos.
Esta passagem é pontiaguda! É como se Hemã estivesse dizendo: “Deus, estou com um pé na cova e o Senhor está me empurrando para dentro!” Ora, este salmista não tem nada a ver com a teologia do Rabino Harold Kushner, que escreveu Quando coisas ruins acontecem às pessoas boas. Veja, se o Rabino Harold Kushner estivesse lá com o salmista, e seguisse coerentemente sua tese, ele teria dito “Olha, Hemã, às vezes coisas ruins acontecem a pessoas boas. Voce é uma boa pessoa. Deus não tem nada a ver com isso. Ele adoraria ajudá-lo, mas não pode porque ele não está no controle de tudo. E se você puder abraçar a compreensão de que Deus não está no controle de tudo e não está no controle de suas circunstâncias, ah! você terá um pouco de alívio em buscar sentir que Deus está (e apenas está!) sofrendo com você, do seu lado.” Tantos pensam assim!
Mas não é isso que este salmista está dizendo. Hemã sabe que Deus é soberano. Ora, você deve saber: além deste salmista, não é interessante que Jó em nenhum momento acalentou o pensamento de que Deus não estaria no controle soberano de sua vida? Na verdade, toda a luta travada no livro de Jó é precisamente porque Jó sabia que Deus estava no controle soberano de sua vida (e de todas as coisas), e ele desejava saber “Senhor, o que o Senhor está fazendo?” Não se lê em qualquer lugar no livro que Jó estivesse indagando ou lamentando algo do tipo: “Oh, Deus! Se o Senhor estivesse no controle de tudo, então eu não estaria neste estado!” Longe disto, pois Jó reconhecia o poder soberano de Deus e se via perplexo pela aparente inação do Soberano.
E digam o que quiser sobre este salmista, ele nem de perto começa a falar como tantos hoje em dia: “Oh, Deus! Eu entendo agora. O Senhor não está no controle de todas as coisas. O Senhor não tem parte neste sofrimento. Tudo isso é alheio à sua vontade. O Senhor gostaria de me ajudar, se pudesse intervir. Só lhe resta sofrer comigo, ao meu lado.” Não. Longe disto, meu Deus do céu! Repetidamente, este salmista reconhece que Deus está no comando e é soberano. Sua mensagem aqui nos versículos 3-9 é de um coração rasgado pelo bisturi da soberania de Deus. Observe, mais uma vez:
3Pois minha vida está cheia de problemas, e a morte se aproxima. 4Fui considerado morto, alguém que já não tem forças. 5Deixaram-me entre os mortos, estendido como um cadáver no túmulo. Caí no esquecimento e estou separado do teu cuidado. 6Tu me lançaste na cova mais funda, nas profundezas mais escuras. 7Tua ira pesa sobre mim; uma após a outra, tuas ondas me encobrem. Interlúdio 8Afastaste de mim os meus amigos e para eles me tornaste repulsivo; estou preso numa armadilha, e não há como escapar. 9As lágrimas de aflição me cegaram os olhos; todos os dias, clamo por ti, SENHOR, e a ti levanto as mãos.
Veja, é precisamente por saber que Deus é soberano sobre cada acontecimento no universo e na nossa própria vida, por saber que ele decreta, dirige e tem parte em todas as coisas e as faz conforme lhe apraz (vs. 3-8), que o salmista – mais uma vez, fundamentado na soberania divina – pôde orar no versículo 9 “clamo por ti, SENHOR, e a ti levanto as mãos.” Ora, se Deus não é soberano sobre todas as coisas, se ele não decreta e dirige tudo e todos, se todas as coisas estão à mercê delas mesmas, das forças das naturezas, da maldade dos seres humanos, entregues ao livre-arbítrio de todos, então para que orar? O salmista ora e rasga o coração diante de seu Deus porque sabe que ele é soberano, inclusive sobre o seu próprio sofrimento.
A etapa seguinte do nosso salmo traça uma ponderação legítima em meio a tanto sofrimento: o salmista apela com base no desejo de seguir adorando o Senhor, por isto ele pondera. Veja, versículos 10-12:
10Será que tuas maravilhas têm algum uso para os mortos? Acaso os mortos se levantam e te louvam? Interlúdio 11Podem os que estão no túmulo anunciar teu amor? Podem proclamar tua fidelidade no lugar de destruição? 12Acaso as trevas falam de tuas maravilhas? Pode alguém na terra do esquecimento contar de tua justiça?
Eis, em suma, do que trata a ponderação do salmista: “Eu quero te louvar, meu Deus, mas não poderei fazê-lo se não tiver vida. Não poderei te louvar no túmulo. Não poderei testemunhar de suas maravilhas. Não poderei falar às pessoas sobre a tua justiça, fidelidade, misericórdia e amor se estiver morto! Então, por favor, me ouça! Responda minha oração! Eu quero continuar te louvando enquanto tenho vida, me ajude!”
Bem, há muito o que aprender com as declarações do salmista. Para começo, vamos parabenizá-lo. Ele não se esqueceu do fim principal do homem. Hemã não negligenciou o propósito da vida: glorificar a Deus e desfrutá-lo para sempre. Ele queria continuar adorando a Deus, só que ele achava que morto ele não louvaria o SENHOR. Mas, ironicamente, não é interessante que Deus faria (e fez!) exatamente o que o salmista pensa que ele não poderia? Preste atenção em cada uma das indagações do salmista e como Deus o teria respondido (vs. 10-12):
— Será que tuas maravilhas têm algum uso para os mortos? (v. 10)
— Na verdade, sim, terá! — diz o Senhor.
— Acaso os mortos se levantam e te louvam? (v. 10)
— Na verdade, querido crente do Antigo Testamento, levantarão e me louvarão! — diz o Senhor.
— Podem os que estão no túmulo anunciar teu amor? (v. 11)
— Sim, é possível, no túmulo do meu Filho eterno! — diz o Senhor.
— Podem proclamar tua fidelidade no lugar de destruição? (v. 11)
— Sim, poderão. Meu filho vai suportá-la por você. — declara o Senhor.
— Acaso as trevas falam de tuas maravilhas? (v. 12)
— Ah, sim! Elas ressoarão até às profundezas do inferno! — afirma o Senhor.
— Pode alguém na terra do esquecimento contar de tua justiça? (v. 12)
— Se pode! A terra toda se encherá do meu conhecimento e da minha glória! — arremata o Senhor.
Veja, a própria forma como o salmista entende e descreve a morte (em seu conhecimento limitado da revelação progressiva e total de Deus) serve para realçar lindamente a esperança cristã da ressurreição. É importante lembrarmos disso, porque, em última análise, nossa esperança não é simplesmente que, quando morrermos, nossa alma irá imediatamente para o Senhor, embora isto seja verdade. Nossa esperança é que um dia nosso corpo ressuscitará dos mortos, e a totalidade de nosso ser – corpo e alma – reviverá, louvará e adorará a Deus por suas maravilhas, seu amor, sua fidelidade, sua justiça… para sempre. A própria falta do entendimento completo dessa verdade por este santo do Antigo Testamento a coloca em relevo para nós cristãos em nossa escuridão que não passa: a ressurreição de Jesus é a nossa esperança para esta e a vida além.
Mas lembre-se, este salmo não tem final feliz (aqui neste vida). Chegamos aos versículos finais e ainda não há resposta para Hemã. O salmista continua clamando, pois sua aflição é recorrente. Versículos 13-18:
13A ti, SENHOR, eu clamo; dia após dia, continuarei a suplicar. 14Ó SENHOR, por que me rejeitas? Por que escondes de mim o rosto? 15Desde a juventude estive doente e à beira da morte; teus terrores me deixaram indefeso e desesperado. 16Sim, tua ira intensa me esmagou, teus terrores acabaram comigo. 17O dia todo, agitam-se ao meu redor como uma inundação e me encobrem por completo. 18Tiraste de mim meus companheiros e pessoas queridas; a escuridão é a minha amiga mais chegada.
Este desfecho nos faz lembrar de que nem sempre haverá um final feliz neste mundo caído no pecado. E ninguém escapa a este tipo de aflição recorrente, nem mesmo os santos mais piedosos. Para ilustrar, deixe-me contar uma história sem final feliz.
Você já deve ter ouvido falar de John Wesley, evangelista, revivalista, o pai pioneiro do metodismo. Derek Thomas, que pregou aqui em nossa igreja em 2017, narrou em uma devocional que li esta semana algo da vida de John Wesley que me deixou intrigado. Um fato que você pode não saber sobre esse grande herói da fé. Eu mesmo não conhecia. Derek, estudioso da história da igreja, relatou que John Wesley teve um casamento muito infeliz. Era tão infeliz e ele vivia tanto tempo longe de casa, pregando em toda parte, que quando finalmente chegou às suas mãos uma carta com a notícia de que sua esposa havia morrido, já fazia muito tempo que ela havia sido sepultada. Não foi um final feliz neste sentido. Claro, nenhum de nós questionaria o quanto John Wesley foi um homem de Deus, amava Cristo e, certamente, deve ter orado pelo seu casamento (a esposa dele também), mas não houve um final feliz nessa história de amor.
Este salmo, esta história – e tantas outras história –, talvez até a história de sua própria vida, revela-nos que realmente existe sofrimento até na vida do crente mais piedoso. Mas este salmo também nos ensina que o crente poderá chegar ao ponto de nunca conseguir, nesta vida, alívio ou fazer sentido pleno de tanta dor e sofrimento, apesar de tanta oração e piedade. Isto porque a miséria humana sempre traça uma trilha de volta ao pecado e, até que o pecado seja finalmente erradicado – na restauração de todas as coisas em Cristo na consumação da história –, a miséria nunca será erradicada. Sofreremos aflições recorrentes. A história deste salmo é a nossa própria história.
Louvado seja o Senhor que, em meio a tanta escuridão que não passava, Hemã, inspirado pelo próprio Deus, deixou-nos luz suficiente para encontrarmos caminho até o próprio Deus, mesmo quando a escuridão não passa. A seguir, alguns flashes de luz:
O PRIMEIRO E MAIS IMPORTANTE FLASH DE LUZ NESTE SALMO é encontrado no primeiro versículo. Como o salmista se refere a Deus? “Ó SENHOR… Ó Deus… Deus da minha salvação.” O salmista está reconhecendo – pelo próprio nome que ele usa para intitular Deus – que seu Deus, o SENHOR soberano, é seu único auxílio e esperança – e esse é o maior feixe de luz neste salmo. Deus é nossa única ajuda e esperança, e essa é a única coisa que nunca é tirada de qualquer crente, mesmo quando nada faz sentido e até Deus pareça estar em silêncio. Não importa o que mais seja tirado de um crente, essa esperança – Deus, o SENHOR como salvador – nunca poderá ser retirada. É muito importante lembrarmos disto. Tudo o mais pode ser perdido neste mundo, mas não esta certeza: o SENHOR soberano é meu salvador. Esta certeza manteve o salmista orando e orando, rasgando seu coração para Deus.
O SEGUNDO FLASH DE LUZ está em que Hemã desejava continuar louvando o SENHOR, e achava que morto ele não poderia adorar (vs. 10-12). Este desejo de se alegrar na adoração foi o que o impulsionou a escrever e compor e cantar – e agora este salmo nos abençoa tanto. O salmista não esperou ficar ou se sentir melhor para depois começar a servir. Ele fez de sua fraqueza o tema de seus louvores. Isto tem muito a nos ensinar. Comece a servir. Os feridos são os que mais aptos se tornam para curar outros feridos. Olhe ao seu redor e veja a quem você pode socorrer.
O TERCEIRO FLASH DE LUZ está na teologia do salmista: Deus é quem decreta e quem dirige todas as coisas, inclusive todo o sofrimento que me acomete; e desse modo ele podia orar e clamar, uma vez que tudo estava nas mãos de Deus. Como nós precisamos desta teologia sólida da completa soberania de Deus nestes tempos líquidos e de desespero.
O QUARTO FLASH DE LUZ está nas trevas em que se encontrava o salmista: “a escuridão é a minha amiga mais chegada” (v. 18) – as trevas do salmista nos remete a Cristo lá na cruz do Calvário. Timothy Keller:
NAS PROFUNDEZAS ESCURAS. O salmista se sente arrasado e esquecido. Essa oração acabará em escuridão, sem uma nota de esperança. Mas o titulo do salmo nos revela que o autor foi Hemã, líder do grupo de músicos coatitas e autor de diversos salmos, parte da mais excelente literatura da história mundial. Suas experiências com a escuridão converteram-no em um artista que tem ajudado milhões de pessoas. Em seu desespero, ele pensou que Deus o abandonara, mas não. Os cristãos sabem que Jesus tomou para si a escuridão suprema da ira de Deus (Mt 27.45). Porque ele levou sobre si o abandono que nós merecíamos, sabemos que Deus não nos abandonará (Hb 13.5). Ele está conosco, mesmo quando não o sentimos de forma nenhuma.
Quando a escuridão não passa: contemple Jesus Cristo, confie no SENHOR, clame em oração, compartilhe de Cristo na roupagem e nas cores e na voz de sua dor ou sofrimento, e conduza as pessoas ao Cristo ressuscitado.
Lembra que falamos dos finais não felizes na vida de C. S. Lewis – a morte da mãe, do amigo, do pai e da esposa amada? Pois bem, quando chegou a hora de ele próprio morrer em Cristo, ao que tudo indica, o final foi feliz. Ele, inclusive, parecia estar prevendo a própria morte quando escreveu em uma de suas últimas cartas a respeito do seu estado de saúde:
Imagine-se como sementinha pacientemente hibernando enterrada no solo; à espera do afloramento no tempo que o jardineiro achar melhor, para o mundo real, para o verdadeiro despertamento. Suponho que toda a nossa vida presente, quando olharmos para trás, a partir daí, não parecerá mais do que um devaneio sonolento. Este é o mundo dos sonhos. Mas o galo está para cantar. E está mais próximo agora, do que quando eu comecei a escrever esta carta.
O galo cantou para Lewis e sua carta de despedida resume o sentimento que toda a sua obra desperta em nós: uma profunda saudade não apenas do autor, mas da vida verdadeira que ele está vivendo na eternidade neste exato momento. Essa é a verdadeira esperança que nos motiva a continuar esta peregrinação quando a escuridão não passa.
S.D.G. L.B.Peixoto
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