02.08.2020
[Filemom 8-16] 8Por isso, ainda que pudesse exigir em Cristo que você faça o que é certo, 9prefiro pedir com base no amor — eu, Paulo, já velho e agora prisioneiro de Cristo Jesus.
10Suplico que demonstre bondade a meu filho Onésimo. Tornei-me pai dele na fé quando estava aqui na prisão. 11Onésimo não lhe foi de muita utilidade no passado, mas agora é muito útil para nós dois. 12Eu o envio de volta a você, e com ele vai meu próprio coração.
13Gostaria de mantê-lo aqui comigo enquanto estou preso por anunciar as boas-novas; assim ele me ajudaria em seu lugar. 14Mas eu nada quis fazer sem seu consentimento. Meu desejo era que você ajudasse de boa vontade, e não por obrigação. 15Ao que parece, você perdeu Onésimo por algum tempo para ganhá-lo de volta para sempre. 16Ele já não é um escravo para você. É mais que um escravo: é um irmão amado, especialmente para mim. Agora ele será muito mais importante para você, como pessoa e como irmão no Senhor.
Continuação da parte 1…
A carta a Filemom nos presta um belo testemunho do poder do evangelho de Cristo para curar o coração, restaurar relacionamentos e construir uma nova cultura no meio do caos de injustiça que era o Império Romano – e ainda o é o mundo contemporâneo. Mas como Paulo a escreveu? De que maneira ele, artesão de palavras, construiu seu argumento?
Tendo em vista a dificuldade de se praticar o perdão, que era o que Filemom deveria fazer com Onésimo, primeiro (como já vimos em mensagens anteriores), o apóstolo tratou de estabelecer o papel da comunidade do amor neste doloroso exercício (vs. 1-3). Em seguida, ele demonstrou a necessidade que temos de viver sob a influência do amor para se ser capaz de perdoar (vs. 4-7). Agora – tendo ele já tratado do papel e da importância da igreja (mesmo que indiretamente nos versículos 1 a 3) e tendo ele já demonstrado o poder da influência (também indiretamente nos versículos 4 a 7) –, no miolo da carta (vs. 8-16), Paulo vai direto ao ponto: “Filemom, receba Onésimo, perdoe-o, trate-o não mais como escravo, mas como irmão em Cristo Jesus, nosso Senhor.”
Eis então o que temos nesta carta: o evangelho nos impulsiona ao amor, à prática do amor, com o mesmo tipo de amor que nós recebemos do Senhor Jesus Cristo; precisamente esse tipo de vida e de amor era o que Paulo almejava extrair de Filemom. O apóstolo queria que seu filho na fé praticasse o amor que flui do evangelho – e perdoasse, e ele sabia que isso só seria possível pelos seguintes: [1] o amor que provamos de Deus nos constrange a amar (vs. 8-9); [2] a transformação pela qual nós passamos em Cristo nos liberta para a amar (vs. 10-12); e [3] a cosmovisão que pelo Espírito nós construímos à partir da Escritura nos ensina a amar (vs. 13-16).
Para conseguirmos praticar a fé e as boas obras, para sermos capazes de amar, segundo o evangelho de Cristo, a primeira coisa que nós precisamos é ser constrangidos pelo amor a praticar o amor e amar. Ouça como Paulo escreveu a Filemom, versículos 8-9:
8Por isso, ainda que pudesse exigir em Cristo que você faça o que é certo, 9prefiro pedir com base no amor – eu, Paulo, já velho e agora prisioneiro de Cristo Jesus.
Observe com atenção o tom do apelo de Paulo. Ele reconhece que seu papel é ser o porta-voz inspirado de Cristo Jesus, e nesse papel de embaixador de Deus e de Cristo (Ef 6.20; 2Co 5.20), nesse papel de ministro da reconciliação (2Co 5.19-20) o apóstolo tinha autoridade para exigir obediência de Filemom – “ainda que pudesse exigir [do grego επιτασσω – epitasso: mandar, ordenar, comandar] em Cristo que você faça o que é certo”, disse Paulo no versículo 8. Em que pesasse toda a sua autoridade e direito apostólicos, leia o versículo 9 mais uma vez e veja como ele preferiu agir: “prefiro pedir com base no amor [do grego παρακαλεω αγαπη – parakaleo agape: chamar para o lado no amor ou falar no amor ou solicitar no amor] – eu, Paulo, já velho e agora prisioneiro de Cristo Jesus.” Uma ordem não nos constrange a amar, atitude de amor sim.
Apesar de nossa versão bíblica trazer como tradução o adjetivo “velho”, no versículo 9, no original grego é πρεσβυτης (presbutes), de onde vem o adjetivo “presbítero”. Realmente, “presbítero” carrega também a ideia de “velho” ou “ancião” e certamente Paulo poderia estar se valendo desse seu status para, de alguma forma, constranger Filemom (visando a lhe mostrar que em Cristo todos nós, de alguma forma, pagamos um preço). Em outras palavras: “Eu, Paulo, apesar de velho – idoso –, estou preso por causa do evangelho de Cristo Jesus, estou pagando um preço. E você, Filemom, deveria perdoar por causa do evangelho de Cristo. Enquanto a prisão é o meu preço no momento, o perdão é o seu.”
Entretanto, tendo em vista que Paulo estava dizendo que ele poderia exigir que Filemom fizesse o que era certo, parece que a utilização do adjetivo πρεσβυτης (presbutes) comunica algo diferente de apenas um status de momento (i.e., um idoso que está preso por uma causa), comunica antes um status de autoridade (i.e., a autoridade de um presbítero, um embaixador). “Embaixador”, aliás, é a forma como nossa versão bíblica escolheu traduzir a palavra πρεσβευω (presbeuo) em Efésios 6.20, que tem a mesma raiz de πρεσβυτης (presbutes) em Filemom 9 – ou seja: quando Paulo escreveu da prisão aos efésios, ele se descreveu como um “presbeuo em cadeias” ou um “embaixador em cadeias” (6.20).
Portanto, Paulo parece, de fato, estar dizendo o seguinte (Fm 9): “Eu, Paulo, embaixador/presbítero e agora também prisioneiro de Cristo Jesus, poderia exigir de você que fizesse o que é certo.” Percebeu? O apóstolo diz ser embaixador de Cristo. Ele está enfatizando sua autoridade. Ele é o apóstolo, o embaixador de Cristo, então tudo aqui – desde seu ofício e postura, incluindo suas correntes e seu sofrimento na prisão por causa do evangelho – destaca e leva à consciência de Filemom os direitos de Paulo relativo à obediência de Filemom à verdade das Escrituras.
Apenas um aparte, pois é digno de nota: quando alguém se torna cristão, a autoridade apostólica o compele ou mesmo o obriga a fazer o que é certo pelos parâmetros da Bíblia. Um cristão deve se submeter e se sujeitar à autoridade de Cristo, falando através dos profetas e dos apóstolos nas Sagradas Escrituras. Paulo, com efeito, estava constrangendo Filemom à obediência, vinculando a consciência dele (Filemom) à autoridade da revelação divina através de sua (Paulo) autoridade como embaixador de Deus e de Cristo. A lição para os cristãos não poderia ser mais clara: quando a Palavra apostólica – nas Escrituras – emite uma ordem ou comando, o crentre em Cristo dobra o joelho em submissão e se levanta rapidamente em obediência, não importando da boca de quem que ela saia. Filemom que nos diga!
Paulo, porém (e nós já vimos isso), opta por não usar sua autoridade. Em vez disso, veja como ele se aproxima de Filemom (v. 9): “Sou apto o bastante – ou sou audaz o bastante –, em Cristo, como presbítero ou embaixador de Cristo que sou, para ordenar que você faça o que é correto, mas, prefiro apelar a você com base no amor.” Percebeu? Com base no amor, Paulo faz o apelo, não com base na autoridade. A voz não é de comando (apesar de que poderia ser), mas de constrangimento pelo amor. Amor que tinha sido uma característica marcante da vida de Filemom desde sua conversão. Paulo até o elogiou por causa do amor que ele tinha por todo o povo santo (v. 5); inclusive expressou a alegria e o conforto que sentia por ouvir dizer o quanto a bondade e o amor de Filemom refrigeravam ou revigoravam o coração do povo santo (v. 7). O apóstolo, portanto, sabia que Filemom era um líder cristão fiel e piedoso, alguém que se destacava acima da média por causa de seu amor sacrificial, generoso e fiel por todo o povo de Deus – fruto de sua fé em Jesus Cristo (v. 5).
Amor é o que também ouvimos pulsar no coração do apóstolo Paulo. Ele declara seu amor por Onésimo, chamando-o de filho, posto que se tornara pai dele na fé quando esteve com ele na prisão (v. 10). No versículo 12, o apóstolo o chama de “meu próprio coração” e no versículo 16, “um irmão amado, especialmente para mim”. Não se trata de uma ladainha pastoral fria e distante, com o intuito de, de alguma forma, convencer Filemom com palavras carregadas de segundas intenções. As palavras de Paulo não eram vazias ou levianas, mas reais. Era de coração. E Filemom deveria seguir aquele modelo.
Paulo tinha uma autoridade que nenhum ministro ou servo da Palavra hoje tem. Ele era porta-voz diretamente autorizado da parte de Deus e de Cristo Jesus, inspirado pelo Espírito Santo a falar a palavra de Deus. No entanto, ao procurar ajudar Filemom a superar, digamos, seus sentimentos feridos – talvez até algum constrangimento público causado por Onésimo, algum prejuízo material –, ao orientar Filemom a pensar e agir de forma cristã, respondendo àquela situação de uma maneira totalmente diferente das respostas padrão do mundo, ele age e fala com base no amor. Ele quer êxito pelo amor. Afinal, é o amor que deve nos constranger a agir com amor.
Já pensou como os cristãos teriam agido diferentemente ao longo dos séculos se tivessem se curvado a este ensino de Paulo? Por exemplo: as Cruzadas não teriam acontecido (1095-1492), massacres em nome da fé cristã não teriam ocorrido, as bruxas de Salém não teriam sido queimadas, e tanto, tanto mais não teria sido brutalmente praticado em nome da “verdade” cristã e sob a “autoridade” de algum cristão. Ações “com base no amor” (Fm 9) teriam nos permitido a escrever uma história totalmente diferente.
Um dos meus versículos preferidos em toda a Bíblia está em 2Coríntios 5.13-15, e dizem o que segue:
13Se parecemos loucos [para os intelectuais, para os gregos ou sábios deste mundo, cf. 1Co 1.23], é para dar glória a Deus, e se mantemos o juízo [freamos as paixões], é para o bem de vocês. 14De qualquer forma, o amor de Cristo nos impulsiona [constrange]. Porque cremos que ele morreu por todos, também cremos que todos morreram. 15Ele morreu por todos, para que os que recebem sua nova vida não vivam mais para si mesmos, mas para Cristo, que morreu e ressuscitou por eles.
O amor de Cristo que nos impulsiona ou constrange é o que nos move a não viver mais para nós mesmos, mas para Cristo e para o próximo. Isto é o que de fato glorifica a Deus. Filemom até poderia obedecer a Paulo, submetendo-se à autoridade do apóstolo, fazendo o que era certo (v. 8), mas se não fosse com base no amor, constrangido pelo amor, não seria de coração (v. 9), não glorificaria o nome de Cristo, tampouco honraria o irmão Onésimo.
Cristianismo não é moralismo: faça x não faça; pode x não pode; obedeça, simplesmente; faça porque eu estou mandando. Nada disso! Cristianismo é cabeça e coração; é ter uma nova maneira de pensar e um novo coração que se constrange a amar. Você tem esse coração, esse novo coração? Ele é fruto do novo nascimento. Deus, pelo poder do Espírito Santo, nos regenera – nos dá um novo coração e uma nova disposição para reconhecer, arrepender, crer, amar e agir com base no amor. O amor que provamos de Deus – na vida e na obra de Cristo – nos constrange a amar.
Benjamin Franklin não conseguiu amar o filho e perdoar o filho. Era um homem de resoluções e de disciplina. Buscava e cultivava virtudes morais, mas fracassou feio. Talvez por nunca ter provado do amor de Deus em Cristo, por buscar viver moral e virtuosamente na força de sua própria vontade. Realmente, ele fez muita coisa, conseguiu muito êxito, foi muito mais ético e moral do que a maioria, mas não era movido pelo amor de Cristo.
Quer ver uma coisa?
Benjamim Franklin era amigo pessoal de George Whitefield – pastor anglicano itinerante, que ajudou a espalhar o Primeiro Grande Avivamento na Grã-Bretanha e, principalmente, nas colônias britânicas norte-americanas. Admirava o pregador, a ponto de dizer: “[Ouvi-lo] Era um prazer muito semelhante ao que se obtém ouvindo uma excelente peça de música.” [Franklin, posição 1885] Mas ele admirava apenas o caráter e a eloquência do homem de Deus. Aos cristãos ele se referia como “seita” [Ibid., posição 1892]. E tudo o que fazia em favor de Whitefield (ou de qualquer outra pessoa), não passava de gentileza ou generosidade humanista mesmo. Ouça, Benjamin Franklin em suas próprias palavras:
[George Whitefield e eu] não mantínhamos ligação religiosa. Com efeito, ele costumava, por muitas vezes, orar pela minha conversão, mas nunca teve a satisfação de crer que suas preces fossem ouvidas. Nossa amizade era puramente civil, sincera de ambas as partes, e perdurou até sua morte. O seguinte exemplo mostra algo dos termos em que nos entendíamos: numa das ocasiões em que chegou a Boston, procedente da Inglaterra, escreveu-me que viria logo a Filadélfia, mas não sabia onde hospedar-se, pois fora informado de que seu velho amigo e anfitrião, Sr. Benezeti havia sido removido para Germantown. Minha resposta foi: “Você conhece minha casa; se puder ajeitar-se em suas modestas acomodações, será muito cordialmente recebido.” Respondeu-me que, se eu fizera esse oferecimento em consideração a Cristo, não deixaria de receber recompensa. Repliquei: “Não se iluda; não foi em consideração a Cristo, mas em consideração a você.” Um de nossos amigos comuns observou que, sabendo ser costume dos santos, quando recebiam um favor, transferir o peso da obrigação de seus próprios ombros e colocá-lo no céu, eu havia conseguido fixá-lo na terra. A última vez que vi o Sr. Whitefield foi em Londres, quando me consultou sobre seu orfanato e sua intenção de destiná-lo ao estabelecimento de um colégio. [Ibid., posição 1865-1872]
Benjamin Franklin agia por mera obrigação imposta pela virtude moral. Não agia com base no amor (de Cristo). Por isso ele nunca conseguiu perdoar o filho, porque é o amor que nós provamos de Deus em Cristo que nos constrange pelo Espírito a amar… a servir… a perdoar e muito, muito mais. Sabedor disso, não querendo uma atitude simplesmente moralista, Paulo escreveu a Filemom (vs. 8-9):
8Por isso, ainda que pudesse exigir em Cristo que você faça o que é certo, 9prefiro pedir com base no amor – eu, Paulo, já velho e agora prisioneiro de Cristo Jesus.
O amor nos constrange a amar.
Continua na parte 3…
S.D.G. L.B.Peixoto
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