26.01.2020
2Tessalonicenses 3.6
E agora, irmãos, nós lhes damos a seguinte ordem em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, mantenham-se afastados de todos os irmãos que vivem ociosamente e não seguem a tradição que receberam de nós.
O DESPREZO PELA TRADIÇÃO
“A tradição que receberam de nós”!
Tradição não é uma palavra que soa bem aos ouvidos do homem e da mulher contemporâneos. Está na moda, como astutamente escreveu o filósofo Luiz Felipe Pondé (no artigo O desprezo pela sabedoria), o termo legado. Mas mesmo este já não significa muita coisa, posto que “tem gente de 16 anos que fala que tem um legado”, observou Pondé.
A ruptura com o passado ou, quando muito, a busca por uma ressignificação ou releitura deste estilhaçou, despedaçou o sentido para a vida e todas as coisas, deixando-nos à deriva num mar de opiniões pessoais, subjetivas, incomprovadas, insustentáveis e, portanto, impossíveis de nos nortear na solidez tão necessária do terreno da verdade.
Outrora, passado ou tradição era reverenciado como forma de estabelecer sentidos precisos para o presente. Heródoto (485-425 d.C.), por exemplo, que recebeu o título de “pai da história”, explicou que os feitos relatados em sua História eram para que
a memória dos acontecimentos não se apague entre os homens com o passar do tempo, e para que os feitos maravilhosos e admiráveis dos helenos e dos bárbaros não deixem de ser lembrados.
O propósito de Heródoto em sua empreitada era evitar a deformação dos registros históricos, seja pelo esquecimento, seja pela falsificação. Por quê?
Diferentemente dos modernos e dos pós-modernos, para gregos e romanos a decadência deveria ser combatida através da reprodução das lições e dos feitos dos grandes mestres da história ou tradição. História ou tradição era, assim, um grande repositório das palavras e das ações, um depósito das verdades e dos valores do passado necessários ao presente.
Assim é que esse “exílio do passado”, para usar a linguagem do filósofo Pondé, condena-nos à estupidez, posto que jogamos fora a sabedoria testada da tradição pelo curso dos séculos. O “exílio do passado” também nos condena à deterioração e destruição, posto que não recorremos ao caminho, à verdade e aos valores de vida aprovados pelo teste da história.
A TRADIÇÃO QUE RECEBEMOS
Apesar do imperativo apostólico — “damos a seguinte ordem em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, mantenham-se afastados de todos os irmãos que vivem ociosamente e não seguem a tradição que receberam de nós” (2Ts 3.6), até mesmo evangélicos desprezam e descartam como maléfica, fundamentalista e retrógrada a tradição protestante. Assim, neste que é o ano do centenário dos Batistas em Goiás, entendemos que, a exemplo do que fizemos com o Pacto da Igreja no ano passado, será importante estudarmos (em cada culto de Ceia, neste e no próximo ano) a tradição batista.
Isto implicará em passearmos pelos anais da história Batista, partindo da Reforma Protestante no século XVI (berço dos Batistas) até à chegada dos Batistas a Goiás e ao nascimento da Segunda Igreja Batista em Goiânia, aportando no estudo dos 18 Artigos de Fé sobre os quais se fundamenta a nossa igreja (vide: Ata de fundação da SIB).
Antes, porém, a fundamentação bíblica para o que faremos nos meses a seguir. Releia comigo o texto inicial. 2Tessalonicenses 3.6:
E agora, irmãos, nós lhes damos a seguinte ordem em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, mantenham-se afastados de todos os irmãos que vivem ociosamente e não seguem a tradição que receberam de nós.
Paulo precisava lidar com um problemão na igreja de Tessalônica: disciplinar aqueles que se recusavam a trabalhar, e acabavam se escorando nos trabalhadores. O apóstolo, então, para a solução do problema, pauta-se na tradição dos apóstolos. Observe.
Embora não haja qualquer coisa em 1 ou 2 Tessalonicenses que vincule explicitamente a ociosidade à confusão sobre o fim dos tempos (que é o tema das duas cartas de Paulo), alguns estudiosos sustentam que os tessalonicenses pararam de trabalhar para aguardar e anunciar a vinda do Senhor. Outros acadêmicos acreditam que o problema era apenas com alguns dos cristãos preguiçosos que exploravam a caridade dos cristãos mais abastados e usavam o tempo ocioso para se intrometer na vida dos outros. Qualquer que fosse a causa da ociosidade, a paciência de Paulo havia se esgotado.
Anteriormente, Paulo já havia se manifestado. 1Tessalonicenses 4.9-12:
9Não precisamos lhes escrever sobre a importância do amor fraternal, pois o próprio Deus os ensinou a amarem uns aos outros. 10De fato, vocês já demonstram amor por todos os irmãos em toda a Macedônia. Ainda assim, irmãos, pedimos que os amem ainda mais. 11Tenham como objetivo uma vida tranquila, ocupando-se com seus próprios assuntos e trabalhando com suas próprias mãos, conforme os instruímos anteriormente. 12Assim, os que são de fora respeitarão seu modo de viver, e vocês não terão de depender de outros.
Apesar da orientação apostólica, o problema persistia. Então, na segunda carta, o apóstolo ordena (2Ts 3.6) a comunidade, “em nome de nosso Senhor Jesus Cristo”, a disciplinar por dissociação aqueles que não estivessem trabalhando, mas por opção dependendo dos outros para viver. Os irmão trabalhadores deveriam ficar longe daqueles irmãos ociosos, o que provavelmente significava exclusão.
Paulo leva a sério o pecado daquelas pessoas, mas, àquela altura, ainda os considerava “irmãos” (2Ts 3.6) — “Não o considerem como inimigo, mas advirtam-no como a um irmão” (2Ts 3.15). Ociosamente (2Ts 3.6) significa “de maneira indisciplinada, irresponsável ou desordenada”. Tais pessoas estavam se esquivando de sua obrigação de trabalhar. E aquele comportamento não estava de acordo com a tradição passada às igrejas pelos apóstolos e seus enviados em relação à necessidade de trabalhar para o sustento. Noutra carta, Paulo escreveu (Ef 4.28, ARA):
Aquele que furtava não furte mais; antes, trabalhe, fazendo com as próprias mãos o que é bom, para que tenha com que acudir ao necessitado.
Importante para nós neste momento é a forma como Paulo usa a tradição para corrigir erros do presente. A respeito do trabalho, a tradição informava como se deveria proceder entre os crente. Mas como? A tradição apostólica ensinava com posturas (2Ts 3.7-9) e com palavras (2Ts 3.10), com prática e com preceitos. Ouça (2Ts 3.6-10):
6E agora, irmãos, nós lhes damos a seguinte ordem em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, mantenham-se afastados de todos os irmãos que vivem ociosamente e não seguem a tradição que receberam de nós. 7Pois vocês sabem que devem seguir nosso exemplo. Não ficamos ociosos quando estivemos com vocês, 8nem nos alimentamos às custas dos outros. Trabalhamos arduamente dia e noite, a fim de não sermos um peso para nenhum de vocês. 9Embora tivéssemos o direito de pedir que nos alimentassem, queríamos lhes dar o exemplo. 10Quando ainda estávamos com vocês, lhes ordenamos: “Quem não quiser trabalhar não deve comer”.
A tradição informa com ações e com palavras, corrigindo, modelando, esclarecendo e norteando com a sabedoria do passado. Sim, outras coisas são importantes neste texto: trabalho, sustento pastoral e testemunho de vida, por exemplo. Mas para nós que embarcamos numa jornada pela tradição batista o que importa agora é o uso que Paulo faz da tradição repassada para a correção de um erro específico: a ociosidade.
É, portanto, bíblica a tradição batista que recebemos. Devemos, pois, estudá-la, visando encontrar correção, modelo, esclarecimento e norte para o presente.
TRADIÇÃO DE HOMENS
Neste ponto cabe uma palavra sobre a crítica que entre nós, evangélicos principalmente, se faz à tradição. Costuma-se dizer que tradição é de homens.
Tradição de homens. E agora?
Realmente, Paulo fala de “tradição de homens”, condenando-a (Cl 2.8). Mas o que é tradição de homens? Jesus também combateu um tipo de tradição que transgride, rejeita, anula e invalida a palavra de Deus (Mt 15.3,6; Mc 7.8-9,13). Como a tradição acaba com a palavra de Deus?
Jesus deixou claro que a tradição transgride, rejeita, anula e invalida a palavra de Deus quando não se norteia pelo amor a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo (Mt 22.34-40). Esse era o grande embate de Jesus com o fariseus: eles não permitiam que a lei os levasse a Deus e os ensinasse a amar; para eles a lei os apontava para regras que os permitissem ser vistos e elogiados pelos homens (Mt 6.6; Jo 12.43). Portanto, quando a tradição exalta homens, não o amor a Deus e o amor ao próximo como consequência do amor a Deus; mais especificamente, onde e quando a tradição não exalta Cristo, não ensina compaixão pelas almas sem Cristo nem amor pelo próximo, ela terá transgredido, rejeitado, anulado e invalidado a palavra de Deus. Essa tradição não presta.
Paulo condenava a “tradição de homens” quando esta, tendo abandonado o depósito recebido de Deus (pela tradição dos profetas e dos apóstolos), orienta-se pela sua própria sabedoria, vontade e espiritualidade. Ouça. Colossenses 2.8:
Não permitam que outros os escravizem com filosofias vazias e invenções enganosas provenientes do raciocínio humano [tradição de homens], com base nos princípios espirituais deste mundo, e não em Cristo.
Portanto, qualquer ensino ou espiritualidade que não derive ou não reflita os profetas e apóstolos, i.e., as Escrituras Sagradas, a Bíblia, exaltando a supremacia da vida e da obra de Cristo, é tradição de homens e deve ser descartada.
Paulo mesmo recebeu a tradição do Senhor e a repassou às igrejas (1Co 11.23): “Pois eu lhes transmiti aquilo que recebi do Senhor.” Paulo ainda repassou a discípulos idôneos que deveriam repassar a outros discípulos idôneos e assim até aos confins da terra (2Tm 1.12-14; 2.2 — ARA):
1.12e, por isso, estou sofrendo estas coisas; todavia, não me envergonho, porque sei em quem tenho crido e estou certo de que ele é poderoso para guardar o meu depósito até aquele Dia. 13Mantém o padrão das sãs palavras que de mim ouviste com fé e com o amor que está em Cristo Jesus. 14Guarda o bom depósito, mediante o Espírito Santo que habita em nós.
2.2E o que de minha parte ouviste através de muitas testemunhas, isso mesmo transmite a homens fiéis e também idôneos para instruir a outros.
A TRADIÇÃO BATISTA
Pois bem, a tradição batista que recebemos é o que estudaremos a seguir, no decorrer deste e do próximo ano, Deus permitindo. Não que sejamos a única e a perfeita denominação. Não há perfeita. A única tradição perfeita é a que encontramos escrita na Bíblia. Também não que sejamos herdeiros diretos dos profetas e apóstolos. Não há sucessão profética e apostólica. Apenas que, nas questões secundárias, no que diz respeito à forma de se ser, organizar-se e se expressar igreja, cremos que os batistas melhor se aproximam do ensino bíblico neotestamentário.
A tradição bíblica e comum aos crentes, a tradição que compartilhamos com todos os cristãos em todos os tempos, e a que celebraremos agora pela manhã na Ceia do Senhor, é a que está posta nas palavras dos apóstolos, a seguir. (Citações da ARA).
1Pe 3.18 | Pois também Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus;
1Tm 2.5-6 | 5Porquanto há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem, 6o qual a si mesmo se deu em resgate por todos: testemunho que se deve prestar em tempos oportunos.
1Tm 3.16 | Evidentemente, grande é o mistério da piedade: Aquele que foi manifestado na carne foi justificado em espírito, contemplado por anjos, pregado entre os gentios, crido no mundo, recebido na glória.
2Tm 2.8 | Lembra-te de Jesus Cristo, ressuscitado de entre os mortos, descendente de Davi, segundo o meu evangelho;
1Co 15.1-4 | 1Irmãos, venho lembrar-vos o evangelho que vos anunciei, o qual recebestes e no qual ainda perseverais; 2por ele também sois salvos, se retiverdes a palavra tal como vo-la preguei, a menos que tenhais crido em vão. 3Antes de tudo, vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, 4e que foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras.
1Co 11.23-26 | 23Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; 24e, tendo dado graças, o partiu e disse: Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim. 25Por semelhante modo, depois de haver ceado, tomou também o cálice, dizendo: Este cálice é a nova aliança no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que o beberdes, em memória de mim. 26Porque, todas as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha.
É para não perdermos o evangelho puro e genuíno que salva e santifica o pecador, levando-o de volta a Deus pelo poder do Espírito Santo e para o louvor da gloriosa graça de Cristo que devemos saber como ser e viver igreja, coluna e baluarte da verdade (1Tm 3.14-15). Portanto, uma viagem pela tradição batista fará muito bem a esta geração afundada no abismo do desespero do barulho do eu ou do silêncio do nada. Nas palavras de Luiz Felipe Pondé:
E a sabedoria nisso tudo? A sabedoria precisa de milênios [tradição] para se constituir. Num mundo em que tudo muda o tempo todo, só vai restar, por ora, workshops ridículos pra te ensinar a abraçar árvores silenciosas. Talvez o silêncio delas nos ensine algo, porque de nós só restará ruídos.
Graças a Deus que nós temos Cristo, a tradição que recebemos, que nos aponta para Cristo e que agora celebraremos na mesa do Senhor.
S.D.G. L.B.Peixoto
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