29.10.2017
500 anos da Reforma: E agora? Como trabalharemos?
As implicações da Reforma para o trabalho
Mateus 5.13-16
[NVT] 13“Vocês são o sal da terra. Mas, se o sal perder o sabor, para que servirá? É possível torná-lo salgado outra vez? Será jogado fora e pisado pelos que passam, pois já não serve para nada. 14“Vocês são a luz do mundo. É impossível esconder uma cidade construída no alto de um monte. 15Não faz sentido acender uma lâmpada e depois colocá-la sob um cesto. Pelo contrário, ela é colocada num pedestal, de onde ilumina todos que estão na casa. 16Da mesma forma, suas boas obras devem brilhar, para que todos as vejam e louvem seu Pai, que está no céu.”
Celebrando os 500 anos da Reforma Protestante
Este ano, dia 31/10/2017, marca os 500 anos da Reforma Protestante. Mesmo tento sido um movimento transformador para o ocidente, possibilitando que todos, no mundo todo, desfrutem dos inúmeros benefícios produzidos pelo trabalho dos reformadores, a Reforma Protestante é ignorada e até desprezada pelos seus filhos rebeldes, tanto fora como dentro da igreja.
Nós, no entanto, não podemos deixar esta data passar desapercebidamente. Ela é muito mais, eternamente mais importante que Halloween ou dia das bruxas (que curiosamente é celebrado no mesmo dia da Reforma Protestante, todos os anos!). Mas, este é outro assunto… o nosso assunto é as implicações da Reforma para o trabalho.
Hoje pela manhã, nós abordamos dois tópicos. Vimos a visão do trabalho antes da Reforma e o pensamento da Reforma sobre o trabalho. Agora à noite, finalizando, precisamos considerar as implicações da Reforma para o trabalho.
As doutrinas que a Reforma Protestante resgatou nos são muito caras; por elas uma pessoa ou uma igreja se sustenta até o dia em que todos veremos Cristo face a face: Sola Fide, Sola Scriptura, Solus Christus, Sola Gratia e Soli Deo Gloria. Essas doutrinas trazem implicações fundamentais não apenas para a forma como nós adoramos na igreja de Cristo, mas também para a maneira como nós trabalhamos enquanto cristãos, de segunda a sexta. Como esta segunda implicação — a forma como trabalhamos — não é sempre destacada, escolhemos enfatizá-la nesta data de celebração pelos 500 anos da Reforma.
Servindo Cristo com o trabalho
Por que o tema é importante? Pense comigo.
Se alguém trabalha 40 horas por semana, por 40 anos de sua vida, isso significa que essa pessoa empregará mais de 80 mil horas em seu emprego durante sua vida toda. Isso sem contar as horas extras, especializações, tempo de locomoção para o trabalho, anos de estudos, etc. Logo, como bem afirmou David Platt,
uma das nossas maiores necessidades na igreja é uma compreensão de como o trabalho diário, de acordo com a Palavra de Deus, está ligado ao supremo propósito de Deus no mundo.
Mostrar como servir e adorar a Deus através do trabalho, encarnar o evangelho no todo da vida, foi o que Lutero e os reformadores depois dele fizeram. A importância disso pode ser observada nas palavras de David Platt:
O evangelho traz um significado importante para aquilo que é aparentemente mundano e oferece um propósito supremo para cada empregado e empregador do planeta.
Isso em si já resolveria dois dos principais problemas enfrentados por todo mundo no mercado de trabalho: insatisfação com o trabalho ou indolência no trabalho e, é claro, a idolatria do trabalho. Precisamos, portanto, do evangelho de Cristo para aprendermos como servir a Cristo com o trabalho. Mas como? As implicações da Reforma para o trabalho nos trarão as respostas.
Os reformadores e a doutrina da vocação ou do chamado
Hoje cedo nós vimos que foi através do trabalho de Lutero que os reformadores do século XVI começaram a recuperar a doutrina bíblica do trabalho, reconhecendo que o todo da vida, incluindo o trabalho diário, deve ser entendido como um chamado de Deus. Nunca é demais destacar a posição de Lutero sobre o que é “chamado” ou “vocação”: “Vocação é o chamado específico para se amar o próximo [através do meu trabalho]” (Lee Hardy).
Segundo Lutero, nós respondemos ao chamado para amar o próximo cumprindo os deveres associados com nosso trabalho diário. Tais deveres incluem os nossos deveres domésticos, cívicos e de emprego profissional. Na verdade, Lutero disse que nós só podemos servir realmente a Deus em meio às circunstâncias cotidianas (pelo nosso trabalho ordinário) e que todas as tentativas de elevar o significado da vida contemplativa (ou monástica) são falsas.
Trinta anos depois de Lutero, João Calvino desenvolveu uma visão ainda mais dinâmica do chamado que encorajou em grandes medidas os empreendimentos urbanos e as possibilidades de mudanças de vocações. Alister McGrath escreve que “a teologia para Calvino ofereceu uma estrutura para se engajar com a vida pública”. Calvino ensinou que o crente tem uma vocação para servir a Deus no mundo — em todas as esferas da existência humana — dando uma nova dignidade e significado ao trabalho comum. Calvino afirmou:
Se seguirmos fielmente nosso chamamento divino, receberemos o consolo de saber que não há trabalho insignificante ou nojento que não seja verdadeiramente respeitado e importante ante os olhos de Deus.
Subjacente ou na raiz desta nova atitude está a noção de vocação ou “chamado”. Deus chama seu povo, não apenas para a fé, mas para expressar essa fé em áreas bem definidas da vida. Assim é que tanto Lutero como Calvino consideravam a vocação como um chamado divino para o mundo cotidiano. Tanto era assim que Lutero usou (em alemão) a palavra “beruf” para trabalho, em lugar de “arbeit”. “Beruf”, acentua mais o aspecto da vocação do que o do trabalho propriamente dito.
Para os reformadores, portanto, a ideia de chamado ou vocação é, antes de qualquer coisa, ser chamado por Deus para servi-lo dentro de seu mundo. Sendo assim, o trabalho se torna uma atividade pela qual os cristãos podem aprofundar sua fé, levando-a a novas qualidades de compromisso com Deus. Hugh Whelchel resumiu bem o pensamento de Lutero e de Calvino que foi passado adiante, quando escreveu que
trabalhar no mundo, de forma motivada, informada e sancionada pela fé cristã, se tornou o meio supremo pelo qual o crente pode demonstrar seu compromisso e gratidão a Deus. Fazer tudo para Deus, e fazê-lo bem no serviço ao próximo, é a marca fundamental da autêntica fé cristã. Diligência e dedicação na vida cotidiana são, ensinou Calvino, uma resposta adequada a Deus.
Lutero, Calvino e todos os outros reformadores contrastaram nitidamente o chamado monástico “para fora do mundo” com o chamado autenticamente cristão “para dentro do mundo”. Esta visão “Reformada” do trabalho e do chamado foi desenvolvida, mais adiante na história, pelos puritanos, que também incentivaram o empreendedorismo, a economia e os investimentos com uma ética forte, enfatizando a importância da administração e do serviço.
Para mais sobre o tema, sugiro o artigo: A Reforma e o Trabalho; por Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa. Faça a busca lá no Google.
Capitalismo e Marxismo
Só que essa “Ética do Trabalho Protestante” logo seria ultrapassada pela “Revolução Industrial”. À caminho do final do século XVIII, começam a surgir duas forças que teriam um efeito duradouro sobre a teologia do trabalho no mundo ocidental: capitalismo e marxismo. (Sugestão bibliográfica: DAVID T. KOYZIS — Visões e ilusões políticas: uma análise e crítica cristã das ideologias contemporâneas.)
Muitos historiadores argumentam que foi a ética de trabalho protestante que inaugurou o “espírito do capitalismo”, levando à Revolução Industrial; enquanto outros sugerem que essa mudança histórica resultou, em vez disso, da corrupção da ética do trabalho protestante. Independentemente de quem esteja com a razão, é durante este período que o conceito de vocação se torna tão intimamente associado à ocupação ou carreira de uma pessoa, que essas palavras se tornaram sinônimas (vocação = ocupação ou carreira) e toda referência ao chamado de Deus desaparece do mercado de trabalho.
Mas, como?
Tanto o capitalismo como o marxismo veem a busca de uma vocação como um fim em si mesmo e encorajam os trabalhadores a buscarem a realização pessoal através do trabalho de suas próprias mãos. Considerando que, uma vez que a igreja medieval ameaçou divorciar a fé do trabalho, agora fé e trabalho estão tão estreitamente fundidos que o trabalho tornou-se um ídolo pelo qual procuramos construir nossa própria identidade e satisfazer todos os nossos desejos. Steve Garber afirmou com lucidez que
o que Marx prometeu aos trabalhadores alienados da Inglaterra do meio do século XIX foi que o trabalho de suas mãos era importante para a história. Mesmo tendo ele [Marx] interpretado de uma maneira profundamente equivocada o coração humano, e passado por inúmeros sofrimentos por causa de sua tese, ele [Marx] respondeu a um profundo anseio humano, a saber: todos nós ansiamos que o nosso trabalho seja importante e tenha significados marcantes. A foice e o martelo, ferramentas comuns que são, representam a esperança de que o que se faz dia após dia afetará a história, que o mundo será diferente por causa do que fazemos. Todos queremos isso, todos em todos os lugares.
A bem da verdade, nem o capitalismo nem o marxismo conseguiram, conseguiram ou jamais conseguirão cumprir a promessa de trazer um significado profundo para o nosso trabalho, e é exatamente por isso que poucas pessoas, incluindo os cristãos, encontram satisfação em seus empregos. Onde isso nos deixa hoje?
Precisamos de uma reforma no trabalho
Em pleno século XXI, portanto, 500 anos após a Reforma Protestante, somos confrontados, não mais com uma, mas com duas grandes distorções quanto ao propósito do nosso trabalho; tais distorções erigiram um muro enorme entre a fé pessoal e o trabalho público do cristão. Derrubar esse muro é a tarefa que temos hoje, 500 anos após a Reforma Protestante.
Os Guinness (O Chamado, ed. Cultura Cristã, caps. 4 e 5) chama essas duas “grandes distorções” de: a “Distorção Católica” — que “eleva o espiritual às custas do secular”; e a “Distorção Protestante” — que “eleva o secular às custas do sagrado”.
O exemplo da “Distorção católica”, que é mais frequentemente ouvido é: “Fulano de tal deixou a carreira do banco para trabalhar para Deus de tempo integral como pastor!”.
A “Distorção Protestante” é uma forma de dualismo em uma direção secular, que não só eleva o secular às custas do espiritual, mas que, também, o destrói totalmente espiritual. Pega, por exemplo, o trabalho, uma coisa boa, e o transforma em algo supremo. Ou seja: o trabalho já não serve a Deus, mas ao homem (idolatria).
Assim, nós pegamos o trabalho e o transformamos em algo muito importante (idolatria — buscamos significado e realização pessoal plena naquilo que fazemos) ou nalguma coisa não importante o bastante (indolência — fazemos porque temos que fazer). Evitar, simultaneamente, ambas as distorções requer uma integração bem-sucedida entre fé e trabalho, uma área na qual a igreja evangélica de hoje está muitíssimo aquém.
Muitos cristãos hoje desejam sinceramente uma abordagem mais profunda e mais integrada para servir a Deus no trabalho, mas não a encontram. Eles estão procurando uma abordagem que leve em consideração o cristão como uma pessoa inteira, não uma vida compartimentada e dividida por demandas conflitantes em diferentes papéis. Eles querem ser homens e mulheres que servem a Deus com coração, alma e mente em todas as esferas da vida: como marido ou esposa, pai, membro da igreja, empregador ou empregado. No entanto, eles lutam para entender por onde começar e como juntar todas as peças.
Os Reformadores mudaram radicalmente seu mundo e sua cultura em apenas uma geração, em parte, trazendo os cristãos para a compreensão bíblica do trabalho. Como cristãos hoje, estamos em uma posição muito semelhante e devemos levar a sério a idéia de ser sal e luz em nosso mundo, de vivermos de uma forma que faça a diferença. Para aproveitar esta oportunidade, para promover o Reino, devemos redescobrir a doutrina bíblica do trabalho. Para tanto, indico três livros em especial:
500 anos da Reforma: E agora? Como trabalharemos?
O que esta análise introdutória do pensamento da Reforma, em busca de orientações para a vida cristã de segunda a sexta, traz de implicações para nós hoje, 500 anos após a Reforma? E agora? Como trabalharemos? Apontarei quatro implicações.
Em primeiro lugar, devemos redescobrir que a nossa vocação primária é o chamado para seguir Jesus, conscientizando-nos de que este chamado abrange toda a nossa vida, incluindo o nosso trabalho cotidiano.
Em segundo lugar, devemos entender que vocação/chamado será diferente para diferentes pessoas e em diferentes momentos ou estágios de nossas vidas.
Em terceiro lugar, devemos entender a tensão que há nas Escrituras em relação ao trabalho. Ou seja: Você não terá uma vida significativa sem trabalho, mas você não deve fazer do seu trabalho o significado de sua vida.
Em quarto lugar, devemos perceber que, através da doutrina cristã do trabalho, Deus restaura ou transforma a cultura e a sociedade.
Se quisermos afetar nossa cultura e ser verdadeiramente sal e luz, devemos ensinar aos cristãos como integrar a fé com o trabalho. Esse foi o legado dor reformadores para a vida cristã de segunda a sexta.
A história de Deus para o trabalho
Finalizaremos com um resumo das implicações dos quatro atos de Deus na história para o nosso trabalho de segunda a sexta.
Criação: O primeiro ato de nossa história. O propósito original do trabalho humano era o avanço do florescimento humano para a glória de Deus. Nosso trabalho, em qualquer esfera que operemos — em casa, na igreja, no local de trabalho — é mostrar a bondade e a magnificência do caráter divino como portadores que somos da imagem de Deus. Fazemos isso enquanto cultivamos o jardim que nos foi confiado, para o florescimento dos seres humanos ao nosso redor, para o louvor da glória de Deus. Em outras palavras, o trabalho é, em primeiro lugar, adoração.
Queda: O segundo ato de nossa história. O problema com o nosso trabalho é que perdemos a conexão entre Deus, o trabalho e a adoração. Algumas vezes nós degradamos o trabalho — e não o vemos como adoração a Deus. Outras vezes nós idolatramos o trabalho — e o adoramos (e em última instância, adoramos a nós mesmos) em vez de vê-lo como um ato de adoração, adoração ao Deus verdadeiro. Perdemos o trabalho como adoração a Deus.
Redenção: O terceiro ato. As pessoas são redimidas ou resgatadas, não o trabalho. Porque nós somos redimidos, o trabalho não é mais sobre o nosso nome, sobre a nossa glória. É sobre o nome e a glória do Criador. Porque somos redimidos e recriados como produto do trabalho de Deus, nosso trabalho, apesar de penoso, insignificante e compulsório, pode, mais uma vez, ser livremente oferecido como adoração — porque essa obra em si é produto do trabalho de Deus em Cristo Jesus. Ele trabalhou com antecedência para nós! Nosso trabalho é importante principalmente porque demonstra o trabalho de Deus em nós.
Restauração: O último ato. O trabalho de restauração. Isaías 65.17-25 e Apocalipse 21 revelam como será o trabalho no novo céu e na nova terra. Vemos as nações trazendo seu esplendor para a Nova Jerusalém, o Jardim que se tornou uma cidade, a cidade de Deus, onde ele mora com seu povo. Aqui está o fim da história do trabalho, um fim que é realmente um novo começo. Por toda a eternidade, nosso trabalho, nossa criatividade, nossa indústria ou produção, nossos labores etc. produzirão esplendor. Mas esse esplendor não será gasto em nós mesmos, não será usado para magnificar nosso nome. O esplendor de nosso trabalho será para a glória de Deus. Trabalhar não será mais penoso, insignificante e compulsório.
Cristo é quem redime a nossa vida e o nosso trabalho (Cl 3.1-25).
S.D.G. L.B.Peixoto
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