10.11.2017
AS RAÍZES DA REFORMA DA TRADIÇÃO BATISTA
1609 — 1646
Os efeitos sísmicos da Reforma
A Reforma do século XVI foi um movimento tremendo de renovação espiritual e eclesiástica que ocorreu na conjuntura crítica entre a decadência da Idade Média e o alvorecer dos tempos modernos. Além de contribuir com essa mudança básica em todos os níveis da consciência ocidental, a Reforma também sinalizou uma reorientação fundamental na teologia cristã.
A descoberta de Lutero da justificação somente pela fé, a insistência de Zwingli na clareza e na certeza da Sagrada Escritura, a ênfase de Calvino na soberania e glória de Deus, e a busca Anabatista por uma igreja visível verdadeira encontraram expressões em diversas novas confissões de fé, comentários bíblicos, liturgias eclesiásticas, hinos congregacionais, ordens da igreja etc.
O impacto da Reforma, no entanto, não se limitou à primeira geração de ouvintes que responderam à mensagem dos reformadores. Como um grande terremoto que continua a gerar efeitos sísmicos posteriores, a Reforma desencadeou uma revolução na vida religiosa, cujos efeitos se sentiram nos séculos seguintes, e até os nossos dias.
Os Batistas e a herança da Reforma
Em nenhum outro lugar os efeitos da Reforma foi mais verdadeiro do que na Inglaterra, onde a Reforma havia começado, pelo menos oficialmente, como um ato de Estado. Na década de 1560 surgiu um grupo (primeiramente denominado de “Puritanos”), que exigia uma nova reforma na Igreja da Inglaterra. Esses crentes “rigorosos”, o “tipo mais esquentado de Protestantes”, como eram apelidados, não gostaram do Livro de Oração da igreja estabelecida e se opuseram ao uso de vestimentas especiais para o clero.
Enquanto alguns pediram mudanças radicais na política da igreja, todos insistiram em um ministério vigoroso de pregação das Escrituras. Desiludidos com o ritmo lento das mudança, esses “Puritanos” se tornaram Separatistas. Foi desse fermento que, no início do Século XVII, emergiu a tradição Batista, tal como hoje nós a conhecemos.
Historiadores isolaram dois começos distintos do movimento Batista inglês:
Os Batistas Gerais enfatizaram a abrangência ilimitada da expiação de Cristo, pareando-se com o teólogo holandês Jacobus Arminius (1560—1609) que argumentava que Cristo morreu por todas as pessoas.
Os Batistas Particulares, por outro lado, eram calvinistas, abraçaram Os Cânones de Dort (1618-19); rejeitavam o arminianismo em cinco artigos de fé; resumidamente: depravação total, eleição incondicional, expiação limitada ou definida, graça irresistível e perseverança dos santos.
Como os Batistas estão relacionados à herança da Reforma?
Esta questão, segundo Timothy George, prova-se difícil de responder por pelo menos três razões:
“Parece-me, às vezes, ser pura ficção e suposição injustificadas — e pura perda de tempo — buscar traçar a genealogia dos grupos e dos indivíduos”.
Em interpretações sucessionistas da história Batista, a Reforma foi essencialmente um campo de caça pelo “elo perdido” entre os Batistas contemporâneos e seus antigos ancestrais. Mais recentemente, no entanto, os historiadores trabalharam com uma metodologia mais refinada para demonstrar a influência específica Anabatista nos Batistas como um todo. Muitas vezes, porém, se perdeu a visão geral por causa dos detalhes.
Não obstante estas complicações, a tese deste ensaio é que os Batistas, juntamente com outros Protestantes, são realmente herdeiros da Reforma. Claro, eles não são, nem nunca foram, meros clones de Lutero, Calvino, Zwingli ou qualquer outra pessoa. Para os Batistas, as grandes doutrinas da Reforma foram refratadas pelo prisma das perseguições e dissidências que provocaram sua intensa defesa da liberdade religiosa e da separação entre igreja e estado.
Os Batistas, naturalmente, são correta e bem-intensionadamente orgulhosos desses e doutros distintivos denominacionais e, obviamente, também reconheceram o terreno comum que compartilham com outros cristãos evangélicos. Assim foi que, a Convenção Batista do Sul dos EUA, por exemplo, reunida em Fort Worth, Texas, em 1890, adotou uma resolução pedindo que uma comissão interdenominacional estudasse as bases para um acordo sobre questões fundamentais entre os grupos cristãos que aderissem à autoridade exclusiva da Sagrada Escritura. O tipo de “ecumenicidade evangélica”, que a Convenção imaginava, de fato, aconteceu quando os Batistas trabalharam ao lado de outros cristãos de persuasão semelhante em inúmeras preocupações sociais e comitês de tradução da Bíblia.
A base (muitas vezes não dita, infelizmente) de tais esforços cooperativos tem sido um compromisso compartilhado com os valores do cristianismo evangélico, com raízes na Reforma Protestante. Porém, isso não é negar que os Batistas também foram (e são), em momentos diferentes e em medidas variadas, paroquiais, isolados e até mesmo esquisitos em suas atitudes em relação aos outros evangélicos. O antídoto efetivo a esse preconceito, é um melhor conhecimento da própria tradição Batista, cujas raízes estão profundamente fincadas na Reforma do século XVI. É isto que, resumidamente, passaremos a examinar.
John Smyth, 1609
O movimento Batista inglês começou a tomar forma em 1609, quando John Smyth despejou a água de uma bacia sobre a própria cabeça em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, rebatizando a si mesmo e em seguida todos os membros da congregação separatista que se refugiava em Amsterdam.
Através de seus estudos das Escrituras, Smyth discordou da posição Separatista tradicional quanto à validade do batismo infantil. Naquela que pode ser considerada a primeira Confissão de Fé Batista — Breve Confissão de Fé em 20 Artigos, composta em 1609, John Smyth registrou sua posição sobre o batismo da seguinte maneira:
14 — [Nós cremos com o coração e com a boca confessamos:] que o batismo é um sinal externo da remissão de pecados, de morte e ressurreição e, portanto, não pertence aos infantes;
Para um bom Batista, até aí tudo bem! Só que esta não é a história toda, pois Smyth, com um pelagianista latente em seu pensamento, rejeitou, por exemplo, a doutrina clássica do pecado original. Observe:
05 — [Nós cremos com o coração e com a boca confessamos:] que não há pecado original (lit., nenhum pecado de origem ou descendência), mas todo pecado é real e voluntário, isto é, uma palavra, uma ação ou um plano contra a lei de Deus; e, portanto, infantes estão sem pecado;
Além de rejeitar a doutrina do pecado original (art. 5) e a doutrina da eleição (art. 2), Smyth rejeitou também a doutrina da justificação somente pela fé (art. 10):
10 — [Nós cremos com o coração e com a boca confessamos:] que a justificação do homem perante o tribunal divino (que é o trono da justiça e da misericórdia) consiste, em parte, na imputação da justiça de Cristo apreendida pela fé, e em parte da justiça inerente, nos próprios santos, pela operação do Espírito Santo, que é chamada de regeneração ou santificação; uma vez que alguém é justo, ele pratica a justiça;
John Smyth também ensinou que o verdadeiro culto vinha do coração e, portanto, qualquer forma de leitura no culto era mera invenção do homem pecador. Por exemplo: orar, cantar e pregar deveriam ser atos completamente espontâneos. Smyth foi tão longe que passou a não permitir a leitura da Bíblia durante o culto, uma vez que considerava as traduções em inglês das Escrituras algo muito aquém da palavra direta de Deus.
Próximo do fim de sua vida, Smyth se arrependeu do ato de se auto-batizar e buscou membresia numa congregação Anabatista holandesa. Sobre os demais, grande parte daquela congregação Batista foi absorvida em congregações ou tradições Anabatistas.
Thomas Helwys, 1612
Um número menor daqueles fieis, liderados por Thomas Helwys, retornou para a Inglaterra em 1612 e fundaram, em Spitalfields, nos arredores de Londres, a que é corretamente chamada de “a primeira igreja Batista em solo inglês”. Eles eram Batistas Gerais, pois advogavam pela expiação ilimitada de Cristo.
Apesar de a história Batista, tipicamente apresentada, ser atribuída mais ao movimento Batista Geral, de fato, são aos Batistas Particulares a quem os Batistas de hoje devem sua doutrina. Como bem nos informou Leon McBeth (professor de história dos Batistas no Southwestern Baptist Theological Seminary Seminary), Texas:
Os Batistas Gerais sempre representaram uma parte pequena da vida Batista na Inglaterra, e uma parte ainda menor na América. Sua influência sobre as principais correntes do movimento Batista nesses países parece ter sido mínima.
Henry Jacob, 1616-1630
Os Batista Particulares surgiram pouco mais tarde, à partir de uma igreja estabelecida por Henry Jacob em Londres no ano de 1616.
Jacob era um pastor Puritano e permaneceu amigo tanto de pastores Separatistas como de pastores piedosos da Igreja da Inglaterra.
Por volta de 1630, vários membros daquela congregação, finalmente, começaram a questionar a validade do batismo infantil. Sob a liderança de Richard Blount, Thomas Killcop, Hanserd Knollys e William Kiffin, eles organizaram uma congregação clandestina sob o princípio de batismo de crentes por imersão.
Confissão de Londres, 1644
Em 1644, sete congregações Batistas Particulares, situadas em Londres e regiões adjacentes, publicaram a primeira Confissão de Fé dos Batistas Particulares, contendo 53 artigos. Em essência, eles afirmavam os fundamentos doutrinários da Reforma Protestante, ordem de governo congregacional, batismo de crentes por imersão e lealdade à autoridade do rei devidamente constituído.
Os autores da Confissão de Londres de 1644 explicaram a razão para a composição daquele documento nos seguintes termos:
A CONFISSÃO DE FÉ de sete congregações ou igrejas de Cristo em Londres, que comumente, mas injustamente, são chamadas de Anabatistas; publicada para a reivindicação da verdade e da informação dos ignorantes; Da mesma forma, para a remoção dessas aspersões que são frequentemente, tanto no púlpito quanto na imprensa, lançadas injustamente sobre elas.
Como se pode notar, eles estavam sendo falsamente acusados de diversas coisas, dentre elas: defender o livre-arbítrio, cair da graça, negar o pecado original, negar respeito às autoridades, praticar atos indecorosos na ministração da ordenança do batismo e, da mesma forma que os crentes da Igreja Primitiva eram acusados de canibalismo, por se reunirem secretamente para observarem a Ceia do Senhor, também os Batistas dos anos de 1640 estavam sendo acusados de praticarem imersão ao nu e até de engravidarem algumas recém-convertidas durante aquelas práticas.
Para se defenderem, no artigo 40, após exporem sua crença sobre batismo, eles incluíram uma nota de esclarecimento que negava aquela ultrajante acusação:
40 — A direção e a maneira de dispensar esta ordenança que as Escrituras sustentam como afundar ou mergulhar todo o corpo debaixo da água, sendo um sinal, deve corresponder ao que significa, quais sejam: primeiro, a lavagem da alma toda no sangue de Cristo; segundo, o interesse que os santos têm na morte, sepultamento e ressurreição (de Cristo); terceiro, juntamente com uma confirmação de nossa fé, que assim como o corpo foi sepultado sob a água e ressuscitou novamente, certamente os corpos dos santos serão ressuscitados pelo poder de Cristo, no dia da ressurreição, para reinarem com Cristo. A palavra Baptizo, significa imergir na água, ainda assim, com roupas convenientes tanto para o batizador como para o batizando, com toda modéstia.
Em essência, a Confissão de Londres de 1644 afirmava as doutrinas da graça, conforme ensinadas por Martinho Lutero, João Calvino e promulgadas nos Cânones de Dort (1618-19); ao mesmo tempo, porém, havia nuances de diferenças muito importantes na forma dos Batistas descreverem tais doutrinas.
Por exemplo: artigo 3 do Manifesto Separatista — Verdadeira Confissão (A True Confession) de 1596 (uma das fontes das quais eles beberam), declarava que Deus “para seus justos propósitos ordenou… tanto anjos como homens à condenação eterna”. Já a Confissão Batista de Londres de 1644 atribuía a justa condenação dos pecadores ao fato de Deus deixá-los “em seus pecados para a sua justa condenação, para o louvor de sua justiça” (art. 3).
Os Batistas de 1644 afirmavam claramente uma teologia altamente predestinativa, incluíndo, por exemplo, as doutrinas da eleição incondicional e da expiação limitada (definida). No entanto, o destaque que davam à soberania de Deus na salvação em momento nenhum diminuiu a crença na responsabilidade do homem (artigos 3 e 21). As doutrinas da graça, conforme expostas naquela confissão de fé, tornaram-se características marcantes no pensamento convencional da tradição Batista, de John Bunyan (1628-1688) à Charles Spurgeon (1834-1892).
Confissão de Westminster, 1646
Em 1646, foi redigido o estandarte oficial da Igreja da Escócia e a confissão autorizada dos Presbiterianos Ingleses, a famosa Confissão de Fé de Westminster.
A Assembléia de Westminster (1643-1649) constituiu o ponto culminante da elaboração confessional reformada. Os documentos teológicos que dela resultaram — a Confissão de Fé e os Catecismos Maior e Breve —, tornaram-se os padrões doutrinários mais aceitos pelos reformados ao redor do mundo.
Aquelas famosa Assembléia foi uma das principais contribuições dos Puritanos, os calvinistas ingleses, para a tradição Reformada. Havia quase um século, eles vinham lutando sem sucesso por uma reforma profunda na Igreja da Inglaterra (Anglicana). Na década de 1640, porém, os puritanos ganharam o controle do Parlamento inglês e entraram em guerra contra o rei Carlos I, que queria manter o sistema episcopal.
Aquele Parlamento calvinista convocou a Assembléia, que se reuniu na famosa abadia de Westminster. Seus integrantes foram cerca de 120 dos mais piedosos e cultos ministros Puritanos, ao lado de uns poucos, mas influentes, Presbiterianos escoceses.
Após extensos debates, o texto da confissão foi concluído no final de 1646. Posteriormente, foram incluídas as passagens bíblicas de apoio, ocorrendo em 1648 a aprovação final do Parlamento. Seu título era:
Artigos de religião cristã, aprovados e sancionados por ambas as casas do Parlamento, segundo o conselho da Assembléia de teólogos ora reunida em Westminster por autoridade do Parlamento.
Confissão de Savoy, 1658
Em 1658, os Congregacionais adotaram a Declaração de Savoy, escrita, dentre outros, pelos famosos puritanos Thomas Goodwin e John Owen.
Trata-se de uma ligeira modificação da Confissão de Fé de Westminster. Algumas coisas foram adicionadas, algumas opiniões foram reduzidas, e fez-se outras adições e alterações no método. A confissão é dividida em 32 capítulos, na mesma ordem que a Confissão de Westminster, que tem 33 capítulos. As mudanças mais importantes referem-se a questões de governo e disciplina da Igreja.
S.D.G. L.B.Peixoto
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