27.10.2024
Hebreus 4.14-16 (NVT)
14Visto, portanto, que temos um grande Sumo Sacerdote que entrou no céu, Jesus, o Filho de Deus, apeguemo-nos firmemente àquilo em que cremos. 15Nosso Sumo Sacerdote entende nossas fraquezas, pois enfrentou as mesmas tentações que nós, mas nunca pecou. 16Assim, aproximemo-nos com toda confiança do trono da graça, onde receberemos misericórdia e encontraremos graça para nos ajudar quando for preciso.
No primeiro século, os cristãos estavam vulneráveis. Eram uma minoria frágil e desprotegida, enfrentando perseguições e injustiças. A crueldade era a regra da vida, e compreender essa realidade é crucial. Afinal, tendemos a romantizar o cristianismo ao ponto de nos enxergarmos como uma elite sofisticada, protegida e bem-sucedida. Acreditamos que nossas convicções devem garantir privilégios, o que é uma ilusão perigosa.
Hoje, temos nossas próprias escolas, faculdades, universidades, hospitais, orfanatos e abrigos, muitas vezes em templos ou edifícios imponentes. Já dominamos também a tecnologia, utilizando-a para difundir a mensagem cristã, educar e cuidar do próximo. A bem da verdade, com o tempo, conquistamos um lugar de destaque e, diante das dificuldades, temos um refúgio onde nos abrigar. Criamos até um dialeto próprio — “cristianês”, “crentês” e, mais recentemente, o “pentecostalês”. Contamos com editoras, livros, canais no YouTube, podcasts e inúmeras páginas nas redes sociais. Em termos de conteúdo digital, fomos além do necessário. Hoje, produzimos filmes e séries de alcance global, que estão em cartaz nos cinemas e disponíveis nas principais plataformas de streaming. Em resumo, tornamo-nos autossuficientes e já não estamos mais “nas ruas”. A luta pela sobrevivência é muito menor do que era no primeiro século.
Ainda assim, reconheço que existem regiões onde o cristianismo enfrenta hostilidade aberta. A perseguição é uma realidade atual. Em 2023, a lista mundial da perseguição, divulgada pelo site Portas Abertas, indicou que mais de 360 milhões de cristãos enfrentam altos níveis de perseguição em 50 países monitorados — isso representa aproximadamente 4,5% da população mundial, que está na casa dos 8 bilhões. Estima-se que entre 50 e 60 países apresentem hostilidades significativas, variando em intensidade e contexto. Isso representa cerca de um em cada sete cristãos no mundo (14,3%), e, em locais como o continente africano e o Oriente Médio, essa proporção chega a um em cada cinco (20%). A hostilidade varia desde a repressão governamental até a violência de extremistas e da própria sociedade.
No nosso país, pelo menos teoricamente, o cristianismo ainda não enfrenta perseguição aberta. A Constituição Federal Brasileira garante a liberdade de fé e culto no Artigo 5º, que estabelece os direitos fundamentais. Por exemplo, no Inciso VI: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.” E no Inciso VIII: “Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.”
Assim, no Brasil, pelo menos por enquanto, não há perseguição aberta aos cristãos. Talvez por isso a carta aos Hebreus nos pareça tão distante. Ela foi escrita para pessoas “nas ruas”, que haviam perdido violentamente suas casas, entes queridos e estavam à beira de perderem suas vidas. Esses irmãos não contavam com o apoio de um governo ou de uma religião organizada para protegê-los. Nesse cenário, a carta trouxe palavras profundas e símbolos do Antigo Testamento, oferecendo uma âncora de esperança para quem vivia em completa vulnerabilidade, à beira de naufragar no desespero. Por exemplo:
Hebreus 6.18-20 (NVT)
18A promessa e o juramento não podem ser mudados, pois é impossível que Deus minta. Portanto, nós que nele nos refugiamos estamos firmemente seguros ao nos apegarmos à esperança posta diante de nós. 19Essa esperança é uma âncora firme e confiável para nossa alma. Ela nos conduz até o outro lado da cortina, para o santuário interior. 20Jesus já entrou ali por nós. Ele se tornou nosso eterno Sumo Sacerdote, segundo a ordem de Melquisedeque.
A esperança em Cristo era a âncora firme e segura para as almas dos crentes que navegavam nas águas selvagens e mortais do primeiro século. Olhar para ele como sustento para a fé e esperança era a única maneira de seguir adiante com amor:
Hebreus 4.14-16 (NVT)
14Visto, portanto, que temos um grande Sumo Sacerdote que entrou no céu, Jesus, o Filho de Deus, apeguemo-nos firmemente àquilo em que cremos. 15Nosso Sumo Sacerdote entende nossas fraquezas, pois enfrentou as mesmas tentações que nós, mas nunca pecou. 16Assim, aproximemo-nos com toda confiança do trono da graça, onde receberemos misericórdia e encontraremos graça para nos ajudar quando for preciso.
Quando lemos a carta aos Hebreus sob essa perspectiva, ela revela uma nova dimensão. Em vez de temer sua densidade teológica ou subestimar a riqueza de detalhes sobre as sombras do Antigo Testamento, passamos a respeitá-la e admirá-la. Entendemos que foi escrita para crentes, especialmente judeus convertidos a Cristo, que estavam à deriva, alguns já afundando em total desespero.
Leitura e compreensão se tornam mais ricas quando entendemos o contexto histórico e o propósito do texto que temos em mãos. Isso é especialmente verdade com os documentos bíblicos. Por isso, antes de mergulharmos na carta aos Hebreus, buscaremos responder algumas perguntas essenciais: Quando foi escrita? Quem é o autor de Hebreus? A quem a carta foi dirigida e por quê? Qual é o seu gênero literário? E, mais importante, qual é o tema e a mensagem de Hebreus? Essas são perguntas cruciais, pois compreender esses aspectos, mesmo que de forma ampla, nos ajudará a captar a essência do texto e absorver de modo mais profundo o que ele tem a nos ensinar.
A Data da Carta
O autor testemunhou que eles chegaram à fé em Cristo pela pregação daqueles que ouviram Jesus, ou seja, os apóstolos. Leia Hebreus 2.3-4 (NVT): “[…] essa grande salvação, anunciada primeiramente pelo Senhor e depois transmitida a nós por aqueles que o ouviram falar […] E Deus confirmou a mensagem por meio de sinais, maravilhas e diversos milagres, e também por dons do Espírito Santo, conforme sua vontade.” Esses pregadores, esses apóstolos que lhes haviam pregado, pareciam já ter falecido. Veja Hebreus 13.7 (NVT): “Lembrem-se de seus líderes que lhes ensinaram a palavra de Deus. Pensem em todo o bem que resultou da vida deles e sigam seu exemplo de fé.”
Os leitores de Hebreus eram cristãos há algum tempo, o bastante para demonstrar maturidade. Veja Hebreus 5.12 (NVT): “A esta altura, já deveriam ensinar outras pessoas, e no entanto precisam que alguém lhes ensine novamente os conceitos mais básicos da palavra de Deus.” Isso sugere que eram crentes há pelo menos dez anos. Assim, a carta parece ter sido escrita entre 60 e 70 d.C., antes da destruição do templo de Jerusalém, pois o autor menciona sacrifícios ainda sendo realizados (7.27-28; 8.3-5; 9.6-9; 10.1-3, 8; 13.10-11), o que indica que o templo ainda estava de pé.
Outro ponto importante: Hebreus 13.23 (NVT) diz: “Quero que saibam que nosso irmão Timóteo já saiu da prisão. Se ele vier em breve, eu o levarei comigo quando for vê-los.” Timóteo era bem jovem quando Paulo o recrutou em Listra, por volta de 50 d.C. Lucas o chamou de discípulo ou aprendiz, sugerindo que ele era um adolescente (Atos 16.1, ARA). E mais: o autor de Hebreus parecia familiarizado com o encarceramento de cristãos (10.34; 13.3), algo que se intensificou com as perseguições de Nero a partir de 64 d.C. Todos esses fatores, juntos, apontam para uma data de composição da carta próxima a 68–69 d.C.
O Autor da Carta
A maioria das epístolas do Novo Testamento menciona claramente seu autor principal, além de indicar quem auxiliou na redação ou quem atuou como secretário (amanuense) na sua composição. Mesmo nas três epístolas atribuídas ao apóstolo João, onde nenhum autor é nomeado (apenas “presbítero” ou “ancião” em 2 e 3 João), o antigo testemunho da história da igreja as vincula de forma clara ao discípulo amado de Jesus.
A carta aos Hebreus, no entanto, é única: uma carta sem um autor declarado. A falta de clareza sobre sua autoria gerou grande incerteza na igreja primitiva. Orígenes de Alexandria, um teólogo do terceiro século, sacramentou a questão ao afirmar: “Quem escreveu a epístola é conhecido somente por Deus.”
O consenso é que o autor de Hebreus, seja ele quem for, era um escritor talentoso, com um vocabulário vasto e profundo conhecimento da Septuaginta (a tradução grega do Antigo Testamento). Os nomes mais citados ao longo da história são Paulo, Lucas, Apolo, Barnabé, Silas ou Clemente de Roma. Até se especulou sobre Maria, mãe de Jesus! Mas ninguém sabe, só Deus. E, na verdade, não importa saber quem escreveu. O que sabemos é que o autor era conhecido pelo público original e estava associado a Timóteo, um dos membros mais próximos do círculo de Paulo (Hb 13.23).
Isso nos dá confiança de que a carta não foi escrita por alguém alheio aos ensinamentos de Jesus e dos apóstolos. A associação com uma figura tão próxima ao círculo paulino e o conteúdo, que exalta a superioridade de Cristo e é teologicamente sólido e coerente com a mensagem dos apóstolos, confirmam a canonicidade da carta. Aliás, os destinatários não só sabiam quem era o autor, como também pareciam conhecê-lo pessoalmente. Veja Hebreus 13.18-19 (NVT): “Orem por nós, pois nossa consciência está limpa e desejamos viver de forma honrada em tudo que fazemos. Orem especialmente para que eu volte e possa vê-los em breve.”
Talvez os leitores originais conhecessem a caligrafia de quem escreveu. Talvez o autor tivesse ministrado a eles e prometido escrever, dispensando a necessidade de assinar seu nome. Talvez ele temesse ser executado se a carta caísse nas mãos dos romanos e, por isso, omitiu qualquer identificação direta.
O Local de Origem da Carta
Não apenas o autor da carta é desconhecido, mas também o local de sua origem permanece um mistério. Observe:
Hebreus 13.23-24 (NVT)
23Quero que saibam que nosso irmão Timóteo já saiu da prisão. Se ele vier em breve, eu o levarei comigo quando for vê-los.
24Transmitam minhas saudações a todos os seus líderes e a todo o povo santo. Os irmãos da Itália também mandam lembranças.
Em vista de Hebreus 13.24b — “Os irmãos da Itália também mandam lembranças.” —, alguns estudiosos consideram que o autor estava na Itália quando enviou esta epístola, talvez em Roma. No entanto, a expressão “da Itália” pode ser entendida de outra forma. Ela parece se referir àqueles que, embora originários da Itália, viviam fora dela. Um exemplo disso é Priscila e Áquila, conforme se lê em Atos 18.2 (NVT): “Ali encontrou um judeu chamado Áquila, natural do Ponto, que havia chegado recentemente da Itália com sua esposa, Priscila, depois que Cláudio César expulsou todos os judeus de Roma [c. 49 d.C.].”
Essa referência sugere que os crentes “da Itália” mencionados em Hebreus eram provavelmente exilados, dispersos em algum ponto do mundo mediterrâneo. A expulsão dos judeus de Roma pelo edito de Cláudio em 49 d.C. é um indicativo histórico de que muitos cristãos judeus foram forçados a deixar a Itália e se estabeleceram em outras regiões. Portanto, é plausível que o autor estivesse fora da Itália, acompanhado de cristãos originários de lá.
Esse detalhe reforça a ideia de que, onde quer que o autor estivesse — de Espanha a Galácia —, ele estava com crentes italianos que enviavam suas saudações aos destinatários da carta, possivelmente em Roma. Essa interpretação amplia nossa compreensão sobre o possível local de origem da epístola e destaca a realidade das migrações e do exílio vividos por muitos cristãos daquela época.
Os Destinatários da Carta
Além do autor e do local de origem, os destinatários originais de Hebreus também são desconhecidos. O título “Epístola aos Hebreus” (o título só aparece nas segunda metade do século II; com Clemente e Orígenes, ambos de Alexandria) sugere que eram cristãos judeus, o que é corroborado por referências na carta que indicam familiaridade com práticas e instituições judaicas. As advertências contra o abandono da fé e o retorno à antiga aliança reforçam essa ideia.
A ênfase no sacerdócio de Jesus e o uso extensivo das Escrituras Hebraicas apontam para um público judeu, possivelmente helenístico. A generosidade dos leitores (Hb 6.10) indica que não viviam na Palestina, pois as igrejas de lá eram conhecidas por necessitar de ajuda material (cf. Rm 15.25-31; 1Co 16.3). Além disso, o autor cita consistentemente a Septuaginta, sugerindo que escrevia para judeus da diáspora.
Embora o apelo da epístola se estendesse também aos gentios, a principal preocupação do autor era evitar que judeus convertidos voltassem ao judaísmo. As evidências internas revelam que os destinatários eram crentes, majoritariamente convertidos do judaísmo, imaturos na fé, vacilantes por causa da perseguição, bem conhecidos do autor e provavelmente residentes em Roma ou arredores.
O Gênero Literário da Carta
Diferente de qualquer outra carta do Novo Testamento, Hebreus foi escrita na forma de um sermão. Ao lê-la, você é exposto ao estilo de pregação da igreja primitiva. A impressão de que se trata mais de um sermão em forma escrita do que de uma epístola tradicional é confirmada pelo próprio autor, que, em seus breves comentários finais (13.18-25), diz em Hebreus 13.22 (NVT): “Suplico a vocês, irmãos, que prestem atenção naquilo que lhes escrevi nesta breve exortação.” A expressão usada aqui — “breve exortação” — é, literalmente, “palavra de exortação” (λόγου τῆς παρακλήσεως).
Essa mesma frase aparece apenas uma outra vez no Novo Testamento, em um contexto significativo. Quando Paulo e Barnabé estavam na sinagoga de Antioquia da Pisídia, área adjacente à Galácia, eles foram convidados a dar uma “palavra de exortação” após a leitura da lei e dos profetas (At 13.14-15). Neste contexto, a frase se refere ao sermão que seguia a leitura nas sinagogas judaicas.
Portanto, ao usar essa designação em Hebreus 13.22, o autor está reforçando que sua carta foi concebida como uma pregação escrita. Outras indicações disso podem ser vistas nas frequentes utilizações dos verbos “falar” e “ouvir” (cf. 2.5; 5.11; 8.1; 9.5; 11.32), tornando a epístola mais parecida com um discurso oral.
William L. Lane observou algo interessante sobre esse aspecto, destacando a intenção do autor de Hebreus em capturar a essência de uma pregação primitiva, criando uma experiência de leitura semelhante à de um sermão falado.
Hebreus é um sermão enraizado na vida real, voltado para uma comunidade local de homens e mulheres que se viram vulneráveis a circunstâncias adversas além de seu controle. A epístola reflete tanto o privilégio quanto o custo do discipulado, sendo uma resposta pastoral sensível à fé enfraquecida de cristãos mais velhos e cansados, que corriam o risco de abandonar seu compromisso. Seu objetivo é fortalecer esses crentes em meio a uma nova crise, encorajando-os a permanecer firmes na fé e advertindo-os sobre o julgamento de Deus caso recuassem. As exortações à fidelidade à aliança e à perseverança são baseadas em uma nova compreensão da obra de Jesus e de seu sacrifício.
A. T. Robertson fez uma descrição detalhada do gênero literário de Hebreus, afirmando que “[Hebreus] é chamada de epístola e, de fato, é, mas de um tipo peculiar. Na verdade, começa como um tratado [teológico, um tratado cristológico], prossegue como um sermão e conclui como uma carta.”
Continua na próxima mensagem…
S.D.G. L.B.Peixoto
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