28.04.2019
SABER ENVELHECER
Salmo 71
[…] 9Não me rejeites agora, em minha velhice; não me abandones quando me faltam as forças. […] 18Não me abandones, ó Deus, agora que estou velho, de cabelos brancos. Deixe-me proclamar tua força a esta nova geração, teu poder a todos que vierem depois de mim. […]
A maioria de nós, já desde muito cedo, quer amadurecer sem envelhecer, como se fosse realmente possível ter a maturidade que se adquire somente ao longo dos anos no corpo de um adolescente que ainda nem viveu duas décadas. Mas nós encontramos alguns mais velhos insistindo em permanecer jovens (querem o respeito devido aos adultos, mas vivem com posturas, atitudes e responsabilidades de adolescentes), enquanto outos entre os mais jovens não se esforçam para crescer (querem os privilégios da vida adulta, mas não abandonam a inconsequência, a irresponsabilidade e o egoísmo das crianças). E assim vai caminhando a nossa sociedade.
Infelizmente, nossa cultura ocidental não estima os idosos. Somos uma sociedade utilitarista e autocentrada. Idosos, afinal, requerem atenção, cuidado, trabalho e dinheiro. Por isso a geração mais jovem tende a considerar os idosos como um fardo, principalmente um fardo financeiro, além de achá-los um estorvo na busca do prazer e do sucesso. Por exemplo: Em 1984, Richard Lamm, então governador do estado do Colorado, nos Estados Unidos da América, numa discussão sobre os crescentes custos dos cuidados com a saúde, declarou que os idosos em estado terminal têm “o dever de morrer e sair do caminho”. Ele estava defendendo a eutanásia — ato de proporcionar morte sem sofrimento a pacientes tidos como incuráveis. A declaração do governado, à época com 48 anos de idade, foi estarrecedora. O jornal norteamericano The New York Times —29/03/1984, pág. 06 — reportou o que se lê:
[As pessoas que morrem sem ter a vida artificialmente estendida por aparelhos de UTI são semelhantes a] folhas que caem de uma árvore, formando húmus para as outras plantas crescerem. […] Você tem o dever de morrer e sair do caminho. Deixe a outra sociedade, nossos filhos, construir uma vida razoável.
Para quem não sabe, húmusé “a parte superior do solo caracterizada pela presença de grande quantidade de matérias de origem orgânica, predominantemente vegetal, decompostas ou em decomposição. Pois é, Richard Lamm comparou o morrer na velhice com matérias orgânicas em decomposição! De fato, é um insulto fazer tal comentário, especialmente dizer que alguém “tem o deverde morrer e sair do caminho”.
Se esta ideia não for fruto do darwinismo tão defendido nos meios acadêmicos, o que mais poderia ser? Sim, darwinismo! Afinal, o darwinismo se coerentemente levado à risca nas práticas de políticas públicas não conseguirá produzir outra coisa, a não ser a ideia de que o mais fraco tem o dever de morrer, seja lá como for, para que o mais forte, vigoroso e promissor conquiste o seu espaço. Não é mesmo? Mas isto é outro assunto…
Claro que a maioria das pessoas seria mais polida ou educada ao fazer o tipo de declaração tecida pelo governador do Colorado, mas o pensamento e as atitudes subjacentes deste pensamento estão presentes nas palavras e nas posturas de muitos. Tanto que a cada dia cresce mais, especialmente nos EUA, a prática da eutanásia, principalmente para os idosos em estados terminais — “o dever deles é morrer e sair do caminho para que os mais novos construam uma vida mais razoável”.
Essa mentalidade é degradante, sem dizer que não ajuda nem um pouco as pessoas em seu processo inevitável de envelhecimento. Afinal, como envelhecer numa sociedade que ensina, desde a mais tenra idade, que o indivíduo tem que ter seu caminho aberto, livre de qualquer empecilho (inclusive da carga pesada dos mais velhos), para poder assim construir uma vida mais razoável e plena de prazeres? Que tipo de gente uma sociedade assim produz? Gente que não quer envelhecer. Gente que quer sugar tudo da vida, enquanto podem. Afinal, um dia vão morrer e virarão húmus, não passarão de esterco vegetal ou orgânico no solo desta vida sem sentido. É o caos! Verdadeiramente, o caos!
Graças a Deus, não é assim que a Bíblia descreve a velhice e o processo de envelhecimento. E o Salmo 71 é uma preciosa lição para quem quer saber envelhecer com dignidade, para a glória de Deus e o bem coletivo.
ORAÇÃO DO IDOSO
O Salmo 71 é uma oração. É a oração de um idoso que estava sofrendo. O idoso parece ter sido Davi. Afinal, quase todos os salmos deste que é o Livro II do Saltério (Salmos 42 a 72) têm algum título. De fato, com exceção deste salmo, o único outro salmo que não tem um título é o Salmo 43, que parece pertencer ao Salmo 42 (dos filhos de Corá). Como o Salmo 71 também não tem título, parece mais razoável atribui-lo a Davi, pois que se conecta com os temas do Salmo 70 que o foi atribuído. E o 72 é atribuído a Salomão.
A Septuaginta— a mais antiga tradução em grego do texto hebraico do Antigo Testamento, feita para uso da comunidade de judeus do Egito no final do século III a.C. e no II a.C. — traz o seguinte título para o Salmo 71:
Por Davi, um Salmo cantado pelos filhos de Jonadabe [filho de Recabe], e os primeiros que foram levados cativos.
Esta nota, claro, revela-nos o lugar especial que o salmo tinha no coração daqueles que, cativos na distante Babilônia, penduravam suas harpas nos salgueiros e achavam tão difícil cantar as canções de Sião em uma terra estranha. Era, portanto, um salmo muito especial para os judeus; e deve ser também para nós, pois nos ensina a orar na ora do sofrimento da velhice, além, é claro, de nos ensinar como envelhecer.
OS PROBLEMAS DA VELHICE
Nem sempre é divertido ser idoso, especialmente no Brasil. Em outros tempos e em outras culturas, a velhice tinha e tem vantagens para compensar suas desvantagens. Houve um tempo em que as pessoas idosas eram honradas e respeitadas. A sabedoria delas era valorizada. Isso não é mais verdade no Brasil ou no Ocidente em geral.
Valoriza-se a juventude, e a cultura é tão orientada para os interesses da juventude que muitos idosos tentam se vestir e agir como adolescentes. Davi não teve esses problemas, é claro. Mas os problemas que ele teve como resultado de sua velhice eram sérios e até universais. Na verdade, eles são os problemas mais básicos de todos que envelhecem em todas as épocas e culturas. Observe.
1 Fraqueza: a perda da força, do vigor, da saúde e de habilidades
O problema mais sentido no processo de envelhecer é a fraqueza— isto é, a perda de força, vigor, saúde e habilidades. Esse processo, na vida de alguns, vem fora do tempo, de modo inesperado por causa de alguma doença ou fatalidade. Mas no geral a fraqueza pela perda de força, vigor, saúde e habilidades é resultado do envelhecimento.
Um testemunho: João Wesley, o grande evangelista metodista, um dos grandes heróis da história do cristianismo, viveu 88 anos de idade (1703 a 1791) — o que era um fato quase inédito, pois a média ou estimativa de vida não chegava a 40 anos de idade no século XVIII. Pois bem, esse homem manteve um diário durante a maior parte de sua vida e, no domingo 28 de junho de 1789, há esta entrada:
Hoje eu entro no meu octogésimo sexto ano. Agora eu sinto que envelheci: 1) Minha visão está decaída, de modo que não consigo ler pequenas letras, a menos que sob uma forte luz; 2) Minha força está deteriorada, de modo que ando muito mais devagar do que há alguns anos; 3) Minha memória de nomes, seja de pessoas ou lugares, está debilitada, preciso fazer um esforço enorme para relembrá-los. O que eu devo temer, pensando no amanhã, é que meu corpo vergará a minha mente, produzindo em mim ou teimosia, pela diminuição de minha compreensão, ou mau humor, pelo aumento de enfermidades corporais. Mas tu responderás por mim, ó Senhor meu Deus.
Hoje, mais do que nos dias de Wesley, muitos de nós, senão a maioria, viverá para ver tudo isso e muito mais acontecer no corpo e na mente da gente, pois é maior a expectativa de vida no Brasil (72 anos para homens e 79 para mulheres). Digestão e metabolismo não serão mais os mesmos. Não conseguiremos ouvir tão bem quanto costumávamos ouvir. Nossa Bíblia terá que ser em letras extra-gigantes. Nós nos cansaremos com maior facilidade. O sono vai diminuir, e acordaremos três ou quatro vezes durante a noite. Enfim, quem viver verá que a velhice traz consigo fraqueza: a perda da força, do vigor, da saúde e de habilidades.
É sobre isto que Davi está falando quando ora a Deus, dizendo (Sl 71.9):
Não me rejeites agora, em minha velhice; não me abandones [desampares] quando me faltam as forças.
2 Perseguição: os problemas nos perseguem e aumentam
O segundo problema da velhice é que as dificuldades que enfrentamos ao longo da vida, geralmente, não desaparecem, mas permanecem conosco. E essas dificuldades tendem a aumentar, tanto por causa da decadência crescente de nossas forças como pela perda gradativa da capacidade de lidarmos com os problemas. No caso de Davi, isso tinha a ver com seus inimigos, aqueles sobre os quais ele escreveu em quase todos os outros salmos. E aqui ele escreve sobre eles de novo (Sl 71.10):
Pois meus inimigos falam contra mim; juntos, planejam me matar.
Os problemas, os mesmo problemas, não pouparam a velhice de Davi. Eles o perseguiram, do começo ao fim de sua vida. E assim é também conosco. Em alguns casos, os problemas financeiros nos acompanham do começo ao fim da vida; noutros, são os problemas familiares. De fato, quanto mais os anos passam, mais a situação se agrava, pois vamos perdendo força, vigor e habilidade para lutar.
Algumas pessoas têm problemas de saúde durante toda a vida, e na velhice o quadro se agrava ainda mais. Alguns lutam contra a depressão. Outros sofrem com o preconceito. Em todos os casos os problemas tendem a não desaparecer nem tampouco a se tornarem mais leves à medida que envelhecemos. Na verdade, os problemas da vida vão ficando ainda mais difíceis e certamente mais opressivos e pesados de suportar do que quando éramos mais jovens.
3 Solidão: ficamos sós sem ninguém para nos ajudar
A terceira coisa que incomodou Davi na sua velhice é que, à medida que envelhecia, ele tinha menos pessoas para ajudá-lo, para resolver ou ajudá-lo a resolver os seus problemas. Com efeito, ele descreve a si mesmo como alguém totalmente só, sem ninguém para ajudar, além de Deus. Pior, seus inimigos reconheciam esta condição de Davi; argumentaram que até Deus o havia abandonado e que, portanto, o rei seria presa fácil em suas mãos. Ouça (Sl 71.11-12):
11Dizem: “Deus o abandonou! Vamos persegui-lo e prendê-lo, pois agora ninguém o livrará”. 12Ó Deus, não permaneças distante; vem depressa me socorrer, meu Deus.
Na juventude, geralmente, temos muitos amigos e colegas de colégio ou trabalho. Há pessoas com as quais nós podemos compartilhar nossos fardos. Mas quando chega a velhice, os mesmos amigos estão também precisando de ajuda, pois também estão fracos pela idade, além de perseguidos pelos mesmos problemas de sempre. E os mais jovens não têm paciência com os mais velhos. Logo, tendemos a ficar todos sós na velhice.
Creio que a solidão da velhice é didática, é Deus nos fazendo confiar apenas em quem deve ser confiado: ele mesmo e mais ninguém; é Deus nos preparando para nos encontrarmos com ele. Ouça o testemunho de Paulo, que não era idoso quando escreveu, mas que revela o que a velhice acaba impondo a nós, bem como seus frutos (2Co 1.8-11):
8Irmãos, queremos que saibam das aflições pelas quais passamosna província da Ásia. Fomos esmagados e oprimidos além da nossa capacidade de suportar, e pensamos que não sobreviveríamos. 9De fato, esperávamos morrer. Mas, como resultado, deixamos de confiar em nós mesmos e aprendemos a confiar somente em Deus, que ressuscita os mortos. 10Ele nos livrou do perigo mortal, e nos livrará outra vez. Nele depositamos nossa esperança, e ele continuará a nos livrar. 11E vocês nos têm ajudado ao orar por nós. Então muitos darão graças porque Deus, em sua bondade, respondeu a tantas orações feitas em nosso favor.
A velhice nos impõe a solidão, força-nos e ficar cara a cara somente com Deus, preparando-nos para nos encontrarmos com ele na glória do céu. É preciso aproveitá-la.
John Owen — puritano inglês do século XVII e um dos mais destacados teólogos que a Inglaterra e a Universidade de Oxford já conheceu — faleceu com 67 anos (1616 a 1683), ou seja: morreu já bem velhinho para os padrões do século XVII. Meditações sobre a Glória de Cristofoi o último de muitos livros que ele escreveu. Owen faleceu quando o livro estava sendo impresso em 1683. Foi escrito, ele nos diz, “para estimular a própria mente quando a fraqueza, o cansaço e a aproximação da morte” o estavam chamando a deixar este mundo.
Owen soube viver na velhice, soube usar todos os problemas da velhice em seu favor — apropriou-se da fraqueza, da perseguição e da intensificação dos problemas, e também da solidão para ficar a sós com o seu Jesus nas Meditações sobre a Glória de Cristo. Todos deveriam ler este livro. Há em português um resumo desta obra: A Glória de Cristo, John Owen, editora PES. Adquira e leia.
SABER ENVELHECER
O tempo passa para todos, a idade chega, as forças se vão, os problemas nos perseguem e a solidão nos encurrala. Se não soubermos envelhecer, muitas vezes ficaremos com a amargura, o ressentimento e a frustração como companheiros. Pense em Lutero, por exemplo. O reformador encarava a morte com diversão, e às vezes até a ansiava. Ouça:
Se os papistas, hábeis em devorar, morder e dilacerar, ajudarem a lançar fora esta minha carcaça pecaminosa, e se o Senhor não desejar me livrar desta vez, como tantas vezes o fez no passado, eu o louvo e agradeço. Já vivi o bastante [morreu com 63 anos!]. Eles continuarão a sentir todo o peso de Lutero até minha partida.
Martinho Lutero ansiava morrer, mas não soube envelhecer!
Roland H. Bainton, em Cativo à Palavra: a vida de Martinho Lutero(ed. Vida Nova), informa-nos que os últimos 16 anos da vida do reformador, desde a Confissão de Augsburgo, em 1530, até sua morte, em 1546, são geralmente abordados por seus biógrafos de modo mais superficial que os anos anteriores, se não omitidos completamente. Por quê? Ouça o relato de Bainton, um de seu biógrafos mais aclamados (págs. 377-378):
O exílio da vida pública era o que mais o aborrecia porque os conflitos e as lutas dos anos mais dramáticos haviam debilitado sua saúde e, prematuramente, transformado Lutero em um velho irascível, petulante, rabugento, descontrolado e, às vezes, absolutamente grosseiro… Foram muitos os incidentes sobre os quais seria preferível colocar um véu…
Em outras palavras, por não saber envelhecer, Lutero passou os últimos anos de sua vida colecionando vexames: não tratou corretamente a bigamia do príncipe Filipe de Hesse, insultou os anabatistas e atacou os judeus, dentre outras coisas. Como é importante saber envelhecer!
Davi nos mostra que foi uma pessoa realizada, pois soube envelhecer — soube conviver com a fraqueza da idade, soube sofrer com a perseguição dos problemas e soube aproveitar a solidão do envelhecimento. Como? É o que estudaremos na semana que vem, ainda olhando para este salmo, se Deus nos permitir. Por ora, a lição a se destacar é que precisamos saber envelhecer.
Que os jovens se lembrem de Eclesiastes 12.1-7:
1Não se esqueça de seu Criador nos dias de sua juventude. Honre-o enquanto você é jovem, antes que venham os tempos difíceis e cheguem os anos em que você dirá: “Não tenho mais prazer em viver”. 2Lembre-se dele antes que o sol, a lua e as estrelas percam o brilho aos seus olhos, e as nuvens voltem a cobrir o céu depois da chuva. 3Lembre-se dele antes que suas pernas comecem a tremer, e antes que seus ombros se encurvem. Lembre-se dele antes que os poucos dentes que lhe restam já não possam mastigar, e antes que seus olhos deixem de ver com clareza.
4Lembre-se dele antes que seus ouvidos fiquem fracos e você já não ouça o som das pessoas trabalhando nas ruas. Hoje você levanta com o primeiro canto dos pássaros, mas um dia não os ouvirá mais.
5Lembre-se dele antes que você tenha medo de cair e se preocupe com os perigos nas ruas; antes que seus cabelos fiquem brancos como a amendoeira em flor, e você se arraste como um gafanhoto prestes a morrer; e antes que você perca o desejo. Lembre-se dele antes que falte pouco para descer ao túmulo, seu lar eterno, quando os pranteadores chorarão em seu funeral.
6Sim, lembre-se de seu Criador agora, enquanto você é jovem, antes que o fio de prata da vida se rompa e antes que a taça de ouro se quebre. Não espere até que o cântaro se despedace junto à fonte e a roldana se parta junto ao poço. 7Pois, então, o pó voltará à terra e o espírito voltará a Deus, que o deu.
Que os adultos e idosos se lembrem do Salmo 37.25e Isaías 46.3-4:
Sl 37.25 | Fui jovem e agora sou velho, mas nunca vi o justo ser abandonado, nem seus filhos mendigarem pão.
Is 46.3-4 | 3“Ouçam-me, descendentes de Jacó, todos vocês que restam em Israel. Eu os carreguei desde que nasceram, cuidei de vocês desde que estavam no ventre. 4Serei o seu Deus por toda a sua vida, até que seus cabelos fiquem brancos. Eu os criei e cuidarei de vocês, eu os carregarei e os salvarei.
Que todos nós andemos com Deus. Saibamos a envelhecer.
Mais sobre o Salmo 71 na próxima mensagem.
S.D.G. L.B.Peixoto
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