20.09.2020
[Salmo 79] Salmo de Asafe. 1Ó Deus, as nações invadiram a terra que te pertence; profanaram teu santo templo e transformaram Jerusalém num monte de ruínas. 2Deixaram os corpos de teus servos para servirem de alimento às aves do céu. A carne de teus fiéis se tornou comida para os animais selvagens. 3O sangue correu como água ao redor de Jerusalém, e não resta ninguém para sepultar os mortos. 4Nossos vizinhos zombam de nós; somos objeto de riso e desprezo para os que nos rodeiam. 5Até quando, SENHOR, ficarás irado conosco? Será para sempre? Até quando teu zelo arderá como fogo? 6Derrama tua fúria sobre as nações que não te reconhecem, sobre os reinos que não invocam teu nome. 7Pois devoraram teu povo, Israel, e transformaram suas casas em ruínas. 8Não nos culpes pelos pecados de nossos antepassados! Que a tua compaixão venha depressa nos socorrer, pois é grande o nosso desespero! 9Ajuda-nos, ó Deus de nossa salvação, pela glória do teu nome. Livra-nos e perdoa nossos pecados, pela honra do teu nome. 10Por que permitir que as nações digam:
“Onde está o seu Deus?” Mostra-nos tua vingança contra as nações, pois elas derramaram o sangue de teus servos. 11Ouve os gemidos dos prisioneiros; por teu grande poder, salva os condenados à morte. 12Ó Senhor, retribui sete vezes mais a nossos vizinhos pelos insultos que lançaram contra ti. 13Então nós, teu povo, ovelhas do teu pasto, para sempre te daremos graças e louvaremos tua grandeza por todas as gerações.
Há tanta gente que desperta pela manhã e não sente graça de viver. De tanto fazerem as mesmas coisas e não se verem progredindo – enfadadas de tanta realidade – essas pessoas perderam a graça de continuar. As tarefas da casa, o cuidado dos filhos, o expediente de trabalho, a rotina de estudos… Enfim… A correria imposta pelos afazeres da vida, em si mesma, por vezes, torna ofegante a caminhada, atribula a alma e rouba de nós o prazer de sorrir. Adicione-se a isso os dias cada vez mais longos e as noites pouco dormidas. E tem mais: conectados o tempo todo pelo celular, que praticamente se tornou um membro ou órgão do corpo – uma segunda pele –, não temos mais privacidade. Silêncio e solitude se tornaram peças de museu. Toda hora somos interrompidos por uma nova mensagem que, diga-se de passagem, já chega exigindo uma resposta imediata. Como diria Salomão: Parece que tudo é vaidade ou sem sentido; é como correr atrás do vento.
Oh, meu povo! O coração sem janelas, pelas quais é possível ventilar o ar da graça de Deus, cedo ou tarde se sentirá sufocado, senão vertigem, pelas demandas de se simplesmente existir em um mundo que gira tão rápido, um carrossel de ilusões. É tanto que o profeta mais evangélico do Antigo Testamento apontou prognóstico desfavorável aos seres humanos, ao dizer que “até os jovens perdem as forças e se cansam [se fatigam], e os rapazes tropeçam de tão exaustos [e caem]” (Is 40.30). Não é verdade?
Fica pior, é arrasador, quando sobre o fardo de viver se despeja o peso desproporcional de perdas, privações ou problemas de naturezas diversas. Se algumas vezes já é difícil apenas acordar e seguir com a vida, fica praticamente insuportável ter de prosseguir, por exemplo, sangrando a perda de alguém que amamos, privados de dinheiro, de saúde ou de algumas liberdades, castigados pelos problemas que nos atingem de todos os lados.
Quando se pensa que não dá para piorar, descobre-se que não se consegue mais olhar para Deus com louvor. O espírito está angustiado. A alegria deu lugar ao pranto. A gratidão cedeu ao lamento. Se já era difícil apenas viver, se ficou pior o viver por causa do peso dos problemas, que dizer da tristeza escondida de viver sem se conseguir louvar o SENHOR em todo o tempo? A propósito, é possível louvar o SENHOR sem júbilo nos lábios? O que cantar quando estamos arrasados? Esse é um dilema enorme para os cristãos.
Como cultuar a Deus quando se soma aos problemas da vida o problema de não se conseguir louvar? O que fazer dos textos bíblicos que nos instam a nos alegrarmos, regozijarmo-nos no SENHOR, quando o que se sente é só vontade de chorar? E quanto àquele texto de Paulo que diz ser da vontade de Deus que, em tudo, sejamos gratos ao SENHOR – “em tudo, dai graças”, quando não se consegue parar de lamentar?
Sejamos honestos. Tantas vezes nós não conseguirmos cantar de coração alegre. Sentimo-nos hipócritas “louvando” na congregação. Culpamo-nos por não ter vontade de ir aos cultos da igreja. Até porque, vai-se à igreja para louvar, não é mesmo? Mas… E se não há louvor no coração? E se o que há é lamento? O que fazer? Como cantar? O que orar? Neste ponto é que entra a beleza do livro d’Os Salmos, especialmente o Salmo 79.
Temos aprendido que o Saltério serve como um diretório para as nossas afeições. Além de tônico para a alma, ocupa-se de ser também molde para a forma de se sentir, sofrer ou sorrir, a maneira mesma como devemos nos expressar diante de Deus em toda e qualquer circunstância – na alegria ou na tristeza, na saúde ou na doença, na riqueza ou na pobreza. Os Salmos, desse modo, informam e inflamam a nossa espiritualidade. Não é diferente com o salmo em tela, um “Salmo de Asafe”.
Um bom título para este poderia ser: Lamentações de Asafe. Foi composto após o desastre de 587 a. C., quando Jerusalém foi destruída, o templo saqueado e incendiado, muitos judeus foram brutalmente assassinados, ao passo que outros tantos foram levados cativos para Babilônia. Um esquete dessa história de horrores está registrado em 2Reis 25.1-12 e seguintes. Ouça:
1Assim, em 15 de janeiro, durante o nono ano do reinado de Zedequias, Nabucodonosor, rei da Babilônia, e todo o seu exército cercaram Jerusalém e construíram rampas de ataque contra os muros. 2Jerusalém permaneceu cercada até o décimo primeiro ano do reinado de Zedequias. 3Em 18 de julho, no décimo primeiro ano do reinado de Zedequias, a fome na cidade tinha se tornado tão severa que não havia mais nenhum alimento. 4Assim, abriram uma brecha no muro da cidade. Como a cidade estava cercada pelos babilônios, os soldados esperaram até o anoitecer e fugiram pelo portão entre os dois muros atrás do jardim do rei. Então seguiram em direção ao vale do Jordão. 5Contudo, o exército babilônio perseguiu o rei e o alcançou nas planícies de Jericó, pois todos os seus soldados o haviam abandonado e se dispersado. 6Capturaram Zedequias e o levaram ao rei da Babilônia, em Ribla, onde ele recebeu sua sentença. 7Mataram seus filhos diante dele, depois lhe arrancaram os olhos, o prenderam com correntes de bronze e o levaram para a Babilônia. [O templo é destruído] 8Em 14 de agosto daquele ano, o décimo nono do reinado de Nabucodonosor, Nebuzaradã, capitão da guarda e oficial do rei da Babilônia, chegou a Jerusalém. 9Queimou o templo do SENHOR, o palácio real e todas as casas de Jerusalém. Pôs fogo em todos os edifícios importantes da cidade. 10Depois supervisionou o exército babilônio na demolição de todos os muros de Jerusalém. 11Em seguida, Nebuzaradã, capitão da guarda, deportou o povo que havia ficado na cidade, os desertores que se entregaram ao rei da Babilônia e o restante da população. 12Permitiu, no entanto, que alguns dos mais pobres ficassem para cuidar das videiras e dos campos. [E a história continua. Depois leia você mesmo.]
Jeremias havia profetizado tudo isso (7.32-34):
32Portanto, tenham cuidado”, diz o SENHOR, “pois está chegando o dia em que não se chamará mais Tofete, nem vale de Ben-Hinom, mas vale da Matança. Sepultarão corpos em Tofete até não haver mais lugar. 33Os cadáveres deste povo servirão de alimento para os abutres e os animais selvagens, e não restará ninguém para espantá-los. 34Acabarei com os cânticos alegres e com o riso nas ruas de Jerusalém, e já não se ouvirão as vozes felizes de noivos e de noivas nas cidades de Judá. A terra ficará inteiramente desolada.”
Anos após a devastação da cidade santa e da composição do Salmo 79, 1Macabeus 7.16-17, livro apócrifo dos judeus, citou a devastação de Jerusalém nos seguintes termos:
16Dando-lhe eles crédito, [o sumo-sacerdote] Alcimo prendeu sessenta dentre eles e os trucidou num só dia, conforme a palavra que está escrita: 17“As carnes dos teus santos e o seu sangue eles o derramaram ao redor de Jerusalém e não haviam quem os sepultasse.” [Sl 79.3].
A referência que se faz em 1Macabeus à destruição da cidade de Jerusalém por Nabucodonosor se dá porque a tragédia anterior havia se tornado o padrão de todos os julgamentos subsequentes de YAHWEH sobre Jerusalém e seu povo. Ou seja: as Lamentações de Asafe tornara-se o modo de lamento para o povo de Deus.
Enquanto o Salmo 79 demonstra o estado daqueles que ficaram em Jerusalém, o 137 descreve o coração dos que foram deportados para o cativeiro babilônico. Ouça um trechinho do segundo (Sl 137.1-5):
1Junto aos rios da Babilônia, sentamo-nos e choramos, ao nos lembrarmos de Sião. 2Pusemos de lado nossas harpas e as penduramos nos galhos dos salgueiros. 3Os que nos levaram cativos queriam que cantássemos; nossos opressores exigiam uma canção alegre: “Cantem para nós uma das canções de Sião!”. 4Mas como poderíamos cantar as canções do SENHOR estando em terra estrangeira? 5Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, que minha mão direita perca sua habilidade. 6Que minha língua se prenda ao céu da boca se eu não me lembrar de ti, se não fizer de Jerusalém minha maior alegria.
“Rivers of Babylon” (1978) do grupo de disc music Boney M. alcançou grande sucesso mundial nas décadas de 70 e 80. Sua letra remete ao Salmo 137 da Bíblia, que contém nove versículos e retrata o sofrimento do povo judeu no exílio babilônico. Pegando carona no grande sucesso da música, Perla fez sua própria versão – totalmente deturpada – da canção de Boney M. É lamentável como, para satisfazer nossos apetites e inclinações carnais, somos capazes de descontextualizar fatos e verdades que deveriam ser eternizados para a nossa edificação em Deus.
Lembro-me de ouvir, ainda criança (talvez 5 ou 6 anos), “Rivers of Babylon” tocando nas caixas de som do CTC em Caldas Novas, e eu brincando e dançando às margens das piscinas de águas quentes sem ter a menor ideia do que tratava aquela canção (de fato, um Salmo, o Salmo 137). Sem falar da perversão que Perla fez da música e dos ébrios que a cantaram achando tudo muito bom:
Ah ah ah ah…
Vem comigo no meu barco azul, vou te levar
Pra navegar nos rios da Babilônia
Vou mostrar as coisas que tem lá, eu vou te dar
O meu amor, nos rios da Babilônia
Vamos ver
Vamos ver os templos e os jardins, erguidos por um amor
Nos barcos os pescadores e um rei escritor
Vamos ver
Vamos ver a deusa do luar, o astrólogo e o caçador
Sentir o calor do vento aquecer nosso amor
Ah ah ah, ah, ah, ah, ah
Eu vi touros de asas de ouro
Eu vi torres, templos de ouro
Starella, deusa da noite e do luar
Eu vi touros de asas de ouro
Eu vi torres, templos de ouro
Starella, deusa da noite do luar
Vem comigo no meu barco azul, vou te levar
Pra navegar nos rios da Babilônia
Vou mostrar as coisas que tem lá, eu vou te dar
O meu amor, nos rios da Babilônia
Quão diferente do que de fato se canta no Salmo 137!
1Junto aos rios da Babilônia, sentamo-nos e choramos, ao nos lembrarmos de Sião. 2Pusemos de lado nossas harpas e as penduramos nos galhos dos salgueiros. 3Os que nos levaram cativos queriam que cantássemos; nossos opressores exigiam uma canção alegre: “Cantem para nós uma das canções de Sião!”. 4Mas como poderíamos cantar as canções do SENHOR estando em terra estrangeira? 5Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, que minha mão direita perca sua habilidade. 6Que minha língua se prenda ao céu da boca se eu não me lembrar de ti, se não fizer de Jerusalém minha maior alegria.
Junto com o 137, o Salmo 79, desde que foi composto por Asafe, é usado uma vez por ano como oração litúrgica acompanhada de jejuns e orações – em memória à destruição do templo de Jerusalém. Como se não bastasse a celebração anual, nas tardes de sexta-feira, no Muro das Lamentações em Jerusalém, esses salmos são até hoje recitados para expressar a dor dos derrotados e demonstrar o estado espiritual e emocional dos judeus que ainda aguardam a chegada do Messias prometido de Israel.
A verdade, no entanto, é que o Cristo já veio, e com ele o cumprimento da profecia messiânica. Ouça, Lucas 4.16-21:
16Quando Jesus chegou a Nazaré, cidade de sua infância, foi à sinagoga no sábado, como de costume, e se levantou para ler as Escrituras. 17Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías, e ele o abriu e encontrou o lugar onde estava escrito: 18“O Espírito do Senhor está sobre mim, pois ele me ungiu para trazer as boas-novas aos pobres. Ele me enviou para anunciar que os cativos serão soltos, os cegos verão, os oprimidos serão libertos, 19e que é chegado o tempo do favor do Senhor”. 20Jesus fechou o livro, devolveu-o ao assistente e sentou-se. Todos na sinagoga o olhavam atentamente. 21Então ele começou a dizer: “Hoje se cumpriram as Escrituras que vocês acabaram de ouvir”.
A profecia completa está lá em Isaías 61, que acrescenta (vs. 2-3):
2Ele me enviou para dizer aos que choram que é chegado o tempo do favor do SENHOR e o dia da ira de Deus contra seus inimigos. 3A todos que choram em Sião ele dará uma bela coroa em vez de cinzas, uma alegre bênção em vez de lamento, louvores festivos em vez de desespero. Em sua justiça, serão como grandes carvalhos que o SENHOR plantou para sua glória.
Em que pese a chegada de Jesus Cristo, o Messias prometido de Israel – transformando desespero em esperança e lamentos em louvores –, jamais poderemos desprezar ou diminuir o valor do Salmo 79 para nós, cristãos. O Cristo também ensinou que no mundo nós teremos aflições; nesse carrossel do pecado, muito nós lamentaremos até que a profecia messiânica tenha seu cumprimento cabal (Jo 16.33). Portanto, muito nos servirão as Lamentações de Asafe, posto que com elas aprendemos a cantar com o coração quebrado, a cultuar com a alma abatida, a congregar quando não se tem vontade, a louvar em lágrimas – até que sejamos recebidos em glória.
É uma coisa impressionante, que mesmo a destruição da cidade de Davi, Sião, a devastação do templo de Jerusalém, serviria (e ainda serve) como tema para o louvor público do povo de Deus! É absolutamente surpreendente! Há uma lição nisso para nós, ao nos debruçarmos para estudar este salmo de lamento: como louvar em meio às lágrimas? De que maneira nosso lamento se transforma em louvor? É o que passaremos a responder.
Dividiremos o salmo em quatro estrofes:
Continua na parte 2 da mensagem…
S.D.G. L.B.Peixoto
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