29.11.2020
[Romanos 3.28] Portanto, somos declarados justos por meio da fé, e não pela obediência à lei.
Apesar de nos descrevermos como um povo de fé, muito do que se vê – talvez a maioria do que se vê – em termos de profissão de fé e de prática de fé colide frontalmente com o ensino bíblico a respeito deste tema. Assim, na semana passada, antes de mergulharmos no significado de somente a fé, nós nos debruçamos sobre o conceito bíblico de fé.
Biblicamente falando, fé são as mãos que se estendem para receber o tesouro: Cristo; são as correntes que nos ancoram para não naufragarmos no caminho até à pátria superior; é a degustação prazer do coração que provou e viu que Deus é bom.
Ô povo de Deus! Ao lerem a Bíblia, especialmente Hebreus 11, lembre-se de que a grande promessa e o cumprimento das Escrituras é Cristo – o que Deus mesmo promete ser e realizar para a nossa salvação em Cristo. Sobre a fé, por exemplo, não deixem, jamais!, de colocar Cristo como “a certeza de coisas que se esperam” e a “a convicção de fatos que se não veem” (v. 1, ARA). — Cristo. Somente Cristo, contemplado pela fé.
Não substitua Cristo por qualquer outro sonho ou desejo, sob pena de você transformar, mesmo seus sonhos ou desejos mais piedosos, em ídolos. Deus não divide sua glória com o que ou quem quer que seja! Dessa forma, a fé de Hebreus 11 aponta para Cristo, nossa realidade eterna em Cristo. Não transforme Hebreus 11 (ou a doutrina bíblica da fé) em uma fórmula de pensamento positivo, sinônimo de força de vontade, coragem para se saltar no escuro para se conquistar o que tanto se espera, mas ainda não vê. Hebreus 11 está falando de Cristo [abra lá comigo e veja]:
Versículo 3 está descrevendo a atividade de Cristo, co-autor da criação, que pela palavra criou o universo e, sendo ele a Palavra, ao tornar-se carne para realizar a obra de salvação, possibilitou, pela graça, por meio da fé, a criação de um povo exclusivamente seu, zeloso de boas-obras (Tt 2.14); aquele que do nada criou tudo, pode também trazer pecadores mortos em pecados à luz da vida:
Pela fé, entendemos que todo o universo foi formado pela palavra de Deus; assim, o que se vê originou-se daquilo que não se vê.
Versículo 4 está apontando para Cristo, que é o sacrifício perfeito, superior até mesmo ao sacrificado de Abel que foi, por causa da fé, superior ao de Caim:
Pela fé, Abel apresentou a Deus um sacrifício superior ao de Caim. Com isso, mostrou que era um homem justo, e Deus aprovou suas ofertas. Embora há muito esteja morto, ainda fala por meio de seu exemplo.
Versículos 5-6 fala do Cristo que, pela fé, nos leva ao céu para receber o galardão; qual seja: o prazer de, acima de tudo, se desfrutar da glória de Jesus, não o colo da mamãe ou do papai, ou a companhia de alguém que eu tanto amei e que morreu e partiu antes de mim:
5Pela fé, Enoque foi levado para o céu sem ver a morte; “ele desapareceu porque Deus o levou para junto de si. Porque, antes de ser levado, ele era conhecido por agradar a Deus. 6Sem fé é impossível agradar a Deus. Quem deseja se aproximar de Deus deve crer que ele existe e que recompensa aqueles que o buscam.
Versículo 7 é sobre o Cristo que é a nossa arca; e nós, pela fé, nele adentramos e passamos a viver para a sua glória; Cristo é a nossa justiça; à Cristo nós chamamos outros para, também pela fé, entrar na arca que é Cristo mesmo, ainda que tudo pareça ao mundo loucura; aliás, o evangelho é sim escândalo e loucura para os que se perdem:
Pela fé, Noé construiu uma grande embarcação para salvar sua família do dilúvio. Ele obedeceu a Deus, que o advertiu a respeito de coisas que nunca haviam acontecido. Pela fé, condenou o resto do mundo e recebeu a justiça que vem por meio da fé.
Enfim, povo de Deus, não arranquem Cristo das páginas das Escrituras. Apresente-no glorioso, chamando pecadores a desfrutarem dele pela fé. Fé é para se ver Cristo.
Não transforme o evangelho de Cristo em moralismo (sem pregar a fé na graça futura de Deus), nem em evangelho da prosperidade (falando de fé como meio para alguma bênção terrena, sem apontar para a obra completa de Jesus Cristo que nos leva de volta a Deus: o fim último da salvação). O que todos nós precisamos é da justiça de Deus, da aprovação de Deus que vem somente pela fé em Cristo.
RESUMINDO: somente pela fé em Cristo, fruto somente da graça de Deus, é que passaremos a desfrutar da glória eterna de Deus no rosto de Cristo, para a glória de Deus somente. Passemos ao significado mais detalhado de somente a fé.
Precisamos olhar cuidadosamente para o que justificação pela fé somente significa, e para isto podemos nos voltar para uma maravilhosa passagem da Escritura na qual o apóstolo Paulo desdobra em linguagem poderosa e definitiva o que Deus Pai fez por nossa salvação em Jesus Cristo. Está em Romanos 3 – depois que Paulo analisou a rebelião da raça humana (judeus e gentios) contra o Criador (Rm 1-2), e demonstrou como todos, igualmente, estão perdidos e sem esperança à parte da graça de Deus; isto, diz Paulo, é porque “não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus” (vs. 10, 11, ARA). Ele escreveu em Romanos 3.21-25 (NVI):
21Mas agora se manifestou uma justiça que provém de Deus, independente da Lei, da qual testemunham a Lei e os Profetas, 22justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo para todos os que crêem. Não há distinção, 23pois todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus, 24sendo justificados gratuitamente por sua graça, por meio da redenção que há em Cristo Jesus. 25Deus o ofereceu como sacrifício para propiciação mediante a fé, pelo seu sangue, demonstrando a sua justiça.
Esta passagem apresenta vários termos-chave, dentre os quais destacamos três que julgamos compor o núcleo duro do evangelho de Cristo: redenção, propiciação e justificação. Veja, cada um desses termos por sua vez:
É importante a atenção para as palavras “absolver” e “declarar”. O erro mais sério ao tentar entender a justificação é supor que signifique “fazer justo” no sentido de, na verdade, produzir justiça no justificado (fazê-lo justo: “fulano é justo”; “fulano é bom”). É verdade que alguma justiça real segue à justificação – é tanto que estaremos corretos em afirmar que, se não seguir, a pessoa não está justificada. Mas a justificação em si não se refere a esta mudança de caráter e comportamento.
Martinho Lutero, o capitão da Reforma Protestante, inicialmente teve problemas com o termos “justificados”.
De acordo com a compreensão da justificação baseada no significado da palavra em latim, a qual foi a que ele encontrou em sua Bíblia Vulgata (em latim), a justificação é um processo através do qual o indivíduo se torna intrinsecamente santo (uma espécie de mudança de natureza e, consequentemente, de comportamento). Isto parecia fazer sentido, porque – pense bem – Deus não pode declarar uma pessoa justa se a mesma não estiver justa. Deus não brinca com o sentido das palavras. Portanto, erroneamente pensavam Lutero e seus pares católicos romanos: a pessoa deve se tornar justa, e é somente depois que isto acontece que Deus pode declarar a pessoa estar justificada.
Mas como uma pessoa se torna justa? Como criam Lutero e a igreja?
A igreja medieval (século V ao XV) replicava que era pelos sacramentos da igreja que uma pessoa ia se justificando, tornando-se justa. Caso os sacramentos não fossem suficientes, havia ainda o purgatório, onde a punição dos pecados que não haviam sido adequadamente confessados e perdoados poderia ser liquidada ao longo de anos de purgação, e assim, somente assim, purgando, uma verdadeira justiça intrínseca podia ser obtida pelo pecador e ele ser salvo.
Lutero, sincero que era e piedoso que buscava ser, tentou fazer isto. Foi para o monastério e se ingressou na ordem dos agostinianos, em Erfurt na Alemanha, aos 17 de agosto de 1505. Como ele mesmo disse, “para salvar minha alma”, e se tornou um monge modelo em suas obrigações. Ele dedicava longas horas à oração. Jejuava e até açoitava o próprio corpo para subjugar a carne. Acima de tudo, era rigoroso em fazer penitências, ficando no confessionário por horas a cada vez, e assim fatigando seus padres confessores até que eles, finalmente, diziam a ele para retornar a sua cela e não voltar ao confessionário enquanto não tivesse cometido um pecado digno de confissão.
Ouça Lutero a respeito de si mesmo em uma carta ao duque da Saxônia:
Eu era, verdadeiramente, um monge piedoso e segui as regras de minha ordem mais estritamente do que eu possa expressar. Se um monge pudesse obter o céu através de suas obras monásticas, eu certamente estaria habilitado. A este respeito todos os frades que me conheceram podem testificar. Se isto tivesse perdurado muito mais, eu teria levado minha mortificação até a morte, por meio de minhas vigílias, orações, leituras e outros labores.
Não obstante a todo esse sacrifício, Lutero não encontrou paz no exercício de tais práticas. Então, a ordem monástica o instruiu a satisfazer as demandas de Deus por justiça por meio da prática de boas ações. — Mas que ações podem vir de um coração como o meu? — pensou Lutero. — Como posso estar diante da santidade de meu Juiz com obras poluídas em sua própria fonte?
Felizmente, Lutero tinha um padre superior muito sábio, chamado John Staupitz, que lhe prescreveu a leitura e o estudo da Bíblia.
Ao passo em que Lutero estudava a Bíblia, particularmente o livro de Romanos, o reformador descobriu que o entendimento aceito pela igreja sobre justificação era incorreto. O termo grego, que é bem diferente da tradução para o latim, não se refere de forma alguma a uma mudança intrínseca no indivíduo – “fazê-lo justo”, mas sim a uma declaração extrínseca feita por Deus – “declará-lo justo”. É o que o juiz faz em tribunal, quando declara uma pessoa estar absolvida diante da lei.
Justificação é o oposto de condenação. É salvação.
Na salvação, uma vez que nós não temos justiça própria e não somos inocentes por natureza, somos declarados justos – fundamentados somente na expiação de Cristo por nosso pecado e na justiça de Cristo imputada (atribuída) a nós.
Lutero, mais tarde, disse que quando descobriu isto e confiou que Cristo havia pago o preço total de sua salvação, justificando-o – declarando-o justo diante de Deus – foi como se ele entrasse pelos portais do céu para o paraíso.
Em 1647, um grupo de pastores e teólogos reformados, fruto das descobertas e ensinos de Lutero, reuniu-se na Abadia de Westminster, em Londres, e elaborou um conjunto de documentos que hoje conhecemos como os Padrões de Westminster, que incluem a Confissão de Fé, o Catecismo Maior e o Breve Catecismo. Os teólogos procuraram sistematizar o ensino reformado a fim de criar uma Igreja Reformada unificada no reino unido da Inglaterra. Na pergunta e resposta 33 do Breve Catecismo, eles resumem um dos principais pilares da tradição reformada: “O que é a justificação?”, pergunta-se.
JUSTIFICAÇÃO É um ato da livre graça de Deus, através da qual ele perdoa todos os nossos pecados e nos aceita como justos diante de si, somente pela justiça de Cristo a nós imputada [atribuída] e recebida pela fé somente.
O que acabamos de ler é exatamente o que Paulo está ensinando em Romanos 3.21-25 (que há pouco nós lemos, volte lá no texto). Os versículos paulinos…
Sigamos o passo-a-passo desta definição:
1 – A fonte de nossa justificação é a graça de Deus (v. 24)
sendo justificados gratuitamente por sua graça, por meio da redenção que há em Cristo Jesus.
Como “não há justo, nenhum sequer” (Rm 3.10), é claro que ninguém pode fazer-se ou “declarar-se justo” (v. 20). Como, então, a salvação é possível? É possível somente se Deus fizer a obra por nós – que é o que “graça” significa, pois nós não merecemos a obra de Deus. De fato, nós nem mesmo a buscamos ou desejamos.
Não há apenas o “não há justo” e “não há quem entenda” (Rm 3.10, 11). Pior, há ainda o caso de que “não há quem busque a Deus” (Rm 3.11), ninguém tem vontade própria para buscar a Deus, à parte da graça irresistível de Deus. Com efeito, se não fosse pela soberana graça de Deus, totalmente não solicitada e totalmente imerecida, ninguém seria justificado ou salvo. Nós o amamos por que ele nos amou primeiro.
2 – O fundamento de nossa justificação é a obra de Cristo (v. 25)
Deus o ofereceu como sacrifício para propiciação mediante a fé, pelo seu sangue, demonstrando a sua justiça.
Esta é a razão pela qual Paulo inclui “propiciação” e “redenção” neste poderoso parágrafo sumário do evangelho – “redenção” no verso 24, e “propiciação” no verso 25. É desastroso, no entanto, eternamente desastroso que esta doutrina fundamental está sendo perdida em nossos dias.
Entretanto, ela não foi sempre assim tão mal considerada entre evangélicos.
A doutrina da justificação somente pela fé (a qual inclui propiciação e redenção) era preciosa para Charles H. Spurgeon, para citar apenas um dos grandes do passado. Na verdade, a doutrina da propiciação foi o meio de sua conversão. Ouça como aquele grande batista reformado contou:
Quando eu estava sob a mão do Espírito Santo, sob convicção de pecados, tive um claro e nítido sentimento da justiça de Deus. Pecado, independente do que possa ser para outras pessoas, se tornou um peso intolerável para mim… Reconheci-me ser tão horrivelmente culpado que me lembro sentindo que se Deus não me punisse pelos pecados, ele deveria fazê-lo. Senti que o Juiz de toda a terra deveria condenar tais pecados como os meus… Eu tinha sobre minha mente uma profunda preocupação pela honra do nome de Deus e a integridade de seu governo moral. Senti que ser perdoado injustamente não satisfaria minha consciência. O pecado que eu havia cometido devia ser punido. Mas então havia a questão de como Deus poderia ser justo e ainda assim justificar a mim que era tão culpado… Eu estava preocupado e fatigado com esta questão; e não podia ver nenhuma resposta para isto. Certamente, eu nunca poderia ter inventado uma resposta que teria satisfeito minha consciência.
Mas então, como Spurgeon mesmo relata, uma luz raiou em sua alma. Ele viu que
Jesus suportou a penalidade da morte em nosso lugar… Por que ele sofreu, se não para desviar a penalidade de nós? Se então ele a desviou por sua morte, está desviada e aqueles que crêem nele não precisam temer. E deve ser que, desde que a expiação é feita, Deus é capaz de perdoar sem tremer a base de seu trono.
Esta é uma conversão genuína e é pelo menos uma razão do porquê para Spurgeon se tornar um pregador da Bíblia e um evangelista tão influente. Ele conhecia o poder do evangelho da justificação pela graça de Deus, recebida somente pela fé, e estava ávido por proclamar estas boas novas a pessoas que estavam perecendo.
De volta a Paulo.
O apóstolo estava explicando que, na morte de Cristo, Deus foi justo e ele mesmo justificou (e contínua a justificar) o ímpio e pecador de qualquer natureza.
3 – O meio para a nossa justificação é a fé (vs. 25, 26)
Finalmente, a fé é o canal pelo qual a justificação vem a nós ou, na verdade, se torna nossa. A fé não é uma boa obra. Ela é necessária e essencial, mas não é uma boa obra. De fato, a fé não é uma obra (algo que nós mesmos fazemos ou produzimos). A fé é um dom de Deus, como Paulo deixa claro em Efésios 2.8-9:
Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie.
Apesar de a fé ser apenas o canal pelo qual o pecador é justificado, ela é também o único canal. É isto o que sola fide (“somente a fé”) significa. Se fé é meramente receber de coração o que Deus tem feito por nós, então é somente pela fé que somos justificamos – todos os outros atos ou obras sendo excluídos por definição.
Penso já estar evidente: a visão dos teólogos de Westminster sobre a justificação é diametralmente oposta à visão da Igreja Católica Romana (e de boa parte dos evangélicos contemporâneos). Para eles, a justificação do pecador é uma alquimia doutrinária, onde se tenta misturar as obras de Cristo com as do crente, a fim de produzir o ouro da justificação (da bondade ou do caráter que faz por merecer). A teologia reformada, no entanto, sistematizada no Breve Catecismo (ou Catecismo Menor) e refletindo o ensino das Escrituras, coloca a justificação do pecador somente sobre a obra de Cristo.
O único meio pelo qual a perfeita obra de Cristo é recebida é pela fé somente – sola fide. James M. Boice escreveu assim:
Nós não temos outra embaixada de paz para encontrar abrigo da justa ira de Deus, a não ser na perfeita justiça e sofrimento de Cristo, e não há outra ponte entre o homem e Cristo, somente a fé”,.
Caminhemos para a conclusão com as afirmações da Declaração de Cambridge:
Portanto,
S.D.G. L.B.Peixoto
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