01.11.2020
[Efésios 2.8] Vocês são salvos pela graça, por meio da fé. Isso não vem de vocês; é uma dádiva de Deus.
Ontem, 31 de outubro, celebrou-se os 503 anos da Reforma Protestante. Achamos, então, propício, em função da data comemorativa e do estado de erosão da igreja evangélica atual, refletir sobre o que significa ser evangélico.
No que creem os evangélicos?
Por que nós somos Protestantes e não Católicos Romanos?
Em abril de 1996, 120 pastores, docentes e líderes evangélicos de organizações paraeclesiásticas se reuniram em um hotel, no coração da Universidade de Cambridge, estado de Massachusetts, nos Estados Unidos. Preocupados com a desfiguração do movimento evangélico, decidiram convocar a igreja da América do Norte a se arrepender do mundanismo e buscar recuperar as doutrinas bíblicas apostólicas, porque somente elas capacitam a igreja e proporcionam integridade para o seu testemunho perante o mundo. A Declaração de Cambridge foi o documento que se derivou desse trabalho. Lê-se assim em seu Preâmbulo:
As igrejas evangélicas de hoje estão cada vez mais dominadas pelo espírito deste século em vez de pelo Espírito de Cristo. Como evangélicos, nós nos convocamos a nos arrepender desse pecado e a recuperar a fé cristã histórica.
No decurso da História, as palavras mudam. Na época atual isso aconteceu com a palavra evangélico. No passado, ela serviu como elo de união entre cristãos de uma diversidade ampla de tradições eclesiásticas. O evangelicalismo histórico era confessional. Acolhia as verdades essenciais do Cristianismo conforme definidas pelos grandes concílios ecumênicos da Igreja. Além disso, os evangélicos também compartilhavam uma herança comum nos “solas” da Reforma Protestante do século 16.
Hoje, a luz da Reforma já foi sensivelmente obscurecida. A consequência foi a palavra evangélico se tornar tão abrangente a ponto de perder o sentido [Que é, afinal, um evangélico?]. Enfrentamos o perigo de perder a unidade que levou séculos para ser alcançada. Por causa dessa crise e por causa do nosso amor a Cristo, seu evangelho e sua igreja, nós procuramos afirmar novamente nosso compromisso com as verdades centrais da reforma e do evangelicalismo histórico. Nós afirmamos essas verdades, não pelo seu papel em nossas tradições, mas porque cremos que são centrais para a Bíblia.
Nós também, Segunda Igreja Batista em Goiânia, precisamos afirmar essas mesmas verdades, pelos mesmos motivos; precisamos ouvir a voz de Deus em Jeremias 6.16:
Assim diz o SENHOR: “Parem nas encruzilhadas e olhem ao redor, perguntem qual é o caminho antigo, o bom caminho; andem por ele e encontrarão descanso para a alma.
Precisamos batalhar pela “fé que, de uma vez por todas, foi confiada ao povo santo.” (Jd 3). Somente assim, pela fé dos profetas e dos apóstolos, é que encontraremos e espalharemos verdadeiro “descanso para a alma” (Jr 6.16). A razão é simples: somente pelo evangelho bíblico é que se chega a Cristo (o maior bem do evangelho); e somente em Cristo é que se encontra descanso para a alma. Disse o Senhor Jesus em Mateus 11.28-30:
28“Venham a mim todos vocês que estão cansados e sobrecarregados, e eu lhes darei descanso. 29Tomem sobre vocês o meu jugo. Deixem que eu lhes ensine, pois sou manso e humilde de coração, e encontrarão descanso para a alma. 30Meu jugo é fácil de carregar, e o fardo que lhes dou é leve”.
Nosso propósito com a sã doutrina da Reforma Protestante não é outro, mas de desimpedir o caminho para que todos tenham acesso a Cristo, e nele achem descanso para a alma.
Nós concluímos a mensagem desta manhã afirmando que os cinco solas da Reforma Protestante são a essência do que significa ser um cristão protestante ou evangélico ou reformado. (Como você preferir.). Vimos que a grande questão que os reformadores buscaram responder foi, em primeiro lugar: como nos tornamos espiritualmente vivos (uma vez que, por natureza, estamos mortos no pecado)? Em segundo lugar, como nós saímos de debaixo da condenação de Deus (uma vez que, sem Cristo, já estamos condenados)?
São esses, portanto, os dois grandes problemas da humanidade, segundo um cristão protestante, evangélico, reformado (raiz!): [1] externamente, o ser humano vive sob a ira de Deus, posto que pecou; e [2] internamente, o ser humano está morto, ele é incapazes de fazer as pazes com Deus.
A Reforma Protestante, no entanto, reencontrou o tesouro escondido da Igreja: o evangelho da glória e da graça de Deus (nas palavras de Lutero, o capitão da Reforma). Esse evangelho redescoberto é o que nos torna cristãos evangélicos, protestantes e reformados. Ou seja, nascermos de novo espiritualmente (ou revivermos em Cristo) e Deus se voltar 100% a nós para sempre se dá…
Nesta mensagem, buscaremos o fundamento bíblico para a afirmação dos reformadores – de que [1] nascermos de novo ou revivermos em Cristo para a vida eterna, e [2] Deus se voltar 100% a nós para sempre – se dá pela graça somente.
Nenhuma doutrina revela mais a erosão do evangelho do que o que fizeram com a doutrina da graça. Não é que os evangélicos, ou mesmo a Igreja Católica Romana (ICR), negue a doutrina bíblica tão importante da graça de Deus. O problema é que, apesar de afirmarem a doutrina da graça de Deus na teoria, muitos evangélicos (também os católicos) a rejeitam na prática.
A doutrina da graça para os Católicos Romanos
Entre os Protestantes, existe uma enorme incompreensão ou mesmo distorção do ensino da ICR sobre a graça. Às vezes é dito: “Os Católicos ensinam que somos salvos pelas obras, mas os Protestantes ensinam que somos salvos pela graça.” Esta declaração, mesmo sendo comum, não é de todo verdadeira a respeito da ICR.
Católicos não ensinam que alguém é salvo pelas obras à parte da graça de Deus. Eles, de fato, ensinam que uma pessoa é salva pela graça de Deus. Em que, então, Católicos se diferem dos Protestantes? Onde está a linha que diferencia Roma da Reforma? Encontra-se em uma única palavra sola (“somente”).
Os reformadores sustentavam que o pecador é salvo pela graça de Deus, o seu favor imerecido, somente. Essa doutrina significa que nada que o pecador fizer poderá trazê-lo o mérito para obter a graça de Deus; i.e., o pecador não coopera com Deus para merecer a sua salvação, ou mesmo obtê-la. A salvação, do começo ao fim, é o dom soberano de Deus para indignos e não merecedores.
A essência do ensino contra o qual os reformadores lutavam era resumida no lema: “Àqueles que fazem o que lhes é possível fazer Deus não negará sua graça.”
A graça, na mente medieval, era semelhante a uma substância infundida ou despejada nos crentes, o tipo de um “pó mágico” capaz de transformá-los à medida que cooperam com ela. O crente comum poderia fazer uso de um pouco da graça, mas o devoto verdadeiro, além de conservá-la, poderia fazer grande uso dela pelo zelo pessoal extraordinário e por meio de técnicas espirituais. Portanto, zelo, obras e técnicas espirituais, ao mesmo tempo que evocavam para o fiel a graça de Deus, cooperavam com ela para a salvação. Assim se cria e contra isso lutaram os reformadores.
A doutrina da graça para o evangelicalismo contemporâneo
Antes, porém, de corrermos para tirar o cisco do olho dos católicos, nós evangélicos precisamos, primeiramente, apressar-nos em nos livrar do tronco em nosso olho; somente então seremos capazes de ver o suficiente para tirar o cisco do olho de um católico. Não sejamos hipócritas, conforme nos advertiu o Senhor Jesus Cristo (cf. Mt 7.3-5).
Assim como Roma acreditava na graça (e ainda acredita), evangélicos igualmente acreditam. De fato, a ICR insistia (e insiste) que, sem a graça, ninguém pode ser salvo. Só que, conforme já dissemos, a graça era o tipo de “um pó mágico” que ajudava a pessoa a viver uma vida melhor – com a ajuda de Deus.
Pergunta: no que isso se difere da crença de grande parte dos evangélicos contemporâneos?
Quando se olha para o cenário evangélico atual, fica-se com a impressão de que se crê, firmemente se crê, que os seres humanos são essencialmente bons e que o mal deve ser atribuído a forças impessoais, a estruturas corrompidas de poder, a instituições de alguma forma malignas e até às ações do diabo. Desse modo, a doutrina da graça – que é a essência do evangelho de Cristo – perde completamente o seu sentido e mesmo a utilidade. Durante séculos, isso tem sido chamado de pelagianismo, uma heresia. Mas há muitos evangélicos que pensam assim.
O pelagianismo foi um conceito teológico que negou o pecado original, a corrupção da natureza humana, o servo arbítrio (arbítrio escravizado, cativo ao pecado) e, portanto, a necessidade da graça divina para a salvação. O termo é derivado do nome de Pelágio da Bretanha, forte debatedor de Agostinho (no século V).
Os reformadores não acusavam a ICR de pelagianismo, pois a doutrina fora condenada no concílio de Éfeso (entre 414 e 418 d.C.). Entretanto, líderes eclesiásticos medievais já tinham alertado para a infiltração de um pelagianismo progressivo na ICR (o mesmo se dá hoje entre evangélicos). O que os reformadores oficialmente condenaram foi o semipelagianismo.
O ensino do semipelagianismo é basicamente que o ser humano é salvo exclusivamente por Deus mediante a graça, mas que a salvação partiria somente da inciativa da boa vontade no coração do homem para com Deus. Isto é, o homem precisa dar o primeiro passo em direção a Deus e então Deus irá completar o processo da salvação do homem. Esta teoria foi considerada herética, veja você!, pela ICR no Concílio de Orange (na França, em 441 e 529 d.C.). O semipelagianismo deriva do pelagianismo, e mesmo que tenha sido oficialmente rejeitado, estava impregnado na ICR (e está hoje nos evangélicos).
Os reformadores, em contrapartida, diziam que a graça não é uma substância que Deus nos dá para vivermos uma vida melhor, à partir do momento que damos o primeiro passo e fazemos o que nos é possível. A graça, diziam os reformadores, é uma atitude de Deus em relação a nós, aceitando-nos como justos por causa da santidade de Cristo, e não nossa. Além do quê, Deus é quem coloca em nós o desejo e a capacidade para realizar (cf. Fl 2.13). É Deus quem começa e termina a obra de salvação no pecador (cf. Fl 1.6 e Rm 8.29-30). Isso, sim é graça.
Pergunta: quanto do evangelicalismo brasileiro não se parece com o semipelagianismo? Sim, é a cara dele.
[1] Quantas não são as pregações – pasmem, de púlpitos evangélicos – que soam exatamente como o moto da igreja medieval (e contra o qual lutou a Reforma Protestante): “Deus não negará sua graça àqueles que fazem o que lhes é possível fazer”? – como se fosse possível, sem a iniciativa da graça mesma, o pecador começar a fazer alguma coisa!
[2] Quantas não são as mensagens, semipelagianas (e contra as quais a Reforma Protestante lutou), pregadas ainda hoje em igrejas evangélicas ou por mensageiros do evangelho, e que soam mais ou menos assim: “Você tem que querer… Você tem que tomar uma decisão…” Ora, o que dizer da afirmação de Paulo em Romanos 9.16?
Romanos 9.16 (NVT) Portanto, a misericórdia [a graça] depende apenas de Deus, e não de nosso desejo nem de nossos esforços.
A graça não depende do desejo nem do esforço ou da decisão do homem, mas da pura e simples misericórdia, iniciativa de Deus. É Deus mesmo quem “escolhe ter misericórdia de alguns e endurecer o coração de outros.” (Rm 9.18). E a nós, meros humanos, não nos compete discutir com Deus sobre a forma como ele escolhe agir para revelar a sua própria glória (cf. Rm 9.20-24).
Outra coisa: [3] quantos evangélicos não andam dizendo por aí que a graça de Deus é para me reafirmar ou me fazer sentir amado por Deus, exatamente como eu sou!
A Reforma Protestante, no entanto, insistia no conceito teocêntrico, exaltando a glória da soberana graça de Deus – “Deus assim o fez para o louvor de sua graça gloriosa, que ele derramou sobre nós em seu Filho amado.” (Ef 1.6).
Portanto, não é somente Roma e o ensino da ICR que precisam ser rejeitados dentro dos arraiais evangélicos, como bem escreveu Michael S. Horton:
Mas [também] o sistema wesleyano [arminiano], conforme mediado por Charles Finney, o pentecostalismo [tradicional] e a tradição avivalista, no ponto em que cada uma delas deixa de honrar suficientemente a graça de Deus. Até onde o protestantismo exaltou o homem às custas de Deus, até ali acomodou-se à era moderna e isto está, sem dúvida, no âmago da crise que nos trouxe [os evangélicos] até aqui, para hoje nos arrepender e confessar. [Reforma Hoje, ed. Cultura Cristã, p. 117-18].
Se você pensa que o semipelagianismo, que fala da necessidade da iniciativa do homem (contribuindo com a graça) para a salvação não atingiu, inclusive os Batistas Brasileiros, é porque você desconhece um pouco de nossa história.
Deixe-me resumi-la para você:
Desde os nossos pais missionários – os Bagbys e os Taylors, até meados de 1980, nossa Declaração Doutrinária, fazendo coro com a tradição da Reforma Protestante, dizia assim sobre a salvação:
Artigo 7 – Da graça na regeneração:
Cremos que, a fim de serem salvos, os pecadores devem ser regenerados, ou nascidos de novo; que a regeneração consiste em dar uma disposição santa à mente; que ela é efetuada de uma maneira acima da nossa compreensão pelo poder do Espírito Santo, em conexão com a verdade divina, de maneira a assegurar nossa obediência voluntária ao evangelho; e que sua evidência apropriada aparece nos santos frutos do arrependimento, fé e novidade de vida.
Pois bem, assim nós trazíamos em nossa “Declaração de Fé das Igrejas Batistas do Brasil”, até que, em 1983 (e foi sobre essa declaração que nossa igreja foi organizado em 1944). Entretanto, Assembleia Anual da Convenção Batista Brasileira votou a nomeação de uma Comissão para elaborar uma declaração de fé dos Batistas brasileiros por Batistas brasileiros.
Após certo período de trabalho, em 1985, a citada comissão apresentou ao plenário de sua Assembleia Anual o seu parecer, que foi aceito pelos convencionais presentes. A nova declaração recebeu o nome de “Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira”, de maneira que a referida Convenção reconhece duas confissões de fé: a de New Hampshire, ou “Declaração de Fé das Igrejas Batistas do Brasil”, e a recente “Declaração Doutrinária”.
No quesito salvação, fazendo coro com a tradição reformada, eu fico com a primeira (e os insto a fazerem o mesmo). Afinal, em vez de reconhecer que “a fim de serem salvos, os pecadores devem ser regenerados, ou nascidos de novo; que a regeneração consiste em dar uma disposição santa à mente; […] pelo poder do Espírito Santo, em conexão com a verdade divina, de maneira a assegurar nossa obediência voluntária ao evangelho; e que sua evidência apropriada aparece nos santos frutos do arrependimento, fé e novidade de vida”, a atual declaração versa o que para mim beira ao semipelagianismo combatido pelos nossos pais reformadores. Ouça:
Artigo 5 – Salvação [parágrafo 2]:
A regeneração é o ato inicial da salvação [amém!] em que Deus faz nascer de novo o pecador perdido, fazendo dele uma nova criatura em Cristo. É obra do Espírito Santo [amém!] em que o pecador recebe o perdão, a justificação, a adoção como filho de Deus, a vida eterna e o dom do Espírito Santo. Nesse ato o novo crente é batizado no Espírito Santo, é por Ele selado para o dia da redenção final e é liberto do castigo eterno dos seus pecados.
1 – Há duas condições para o pecador ser regenerado [misericórdia, Senhor!]: arrependimento e fé. [Agora, veja se de fato é possível ao pecador:] O arrependimento implica mudança radical do homem interior, por força do que ele se afasta do pecado e se volta para Deus. A fé é a confiança e aceitação de Jesus Cristo como Salvador e a total entrega da personalidade a ele por parte do pecador.
Ora, é impossível ao homem, à parte da iniciativa da graça de Deus, posto que é o Espírito Santo mesmo é quem convence o homem do pecado (Jo 16.8); e que a fé não vem de nós, é dom de Deus (Ef 2.8). Portanto, é por isso que prefiro dizer com a nossa primeira Declaração de Fé: “a evidência apropriada [da regeneração] efetuada [por iniciativa da graça e pelo Espírito] aparece nos santos frutos do arrependimento, fé e novidade de vida.”
Sim, o pecador precisa tomar uma decisão, ele precisa se arrepender do pecado e crer para a salvação, voluntariamente, mas tudo isso é Deus mesmo que, graciosamente, opera em nós, do começo ao final.
A confiança demasiadamente infundada na capacidade humana de sempre dar o primeiro passo na direção de Deus ou do bem é um produto da natureza humana decaída. Essa falsa confiança enche hoje não apenas o mundo católico, mas o mundo evangélico também – desde o evangelho da autoestima, até o evangelho da saúde e prosperidade; desde aqueles que já transformaram o evangelho em um produto vendável e os pecadores em consumidores, até aqueles que tratam alguma expressão de “fé cristã” como verdadeira simplesmente porque funciona e dá algum resultado palpável.
Povo de Deus, a graça de Deus em Cristo não só é necessária como é a única causa eficaz da salvação. Devemos, pois, reconhecer que os seres humanos nascem espiritualmente mortos, estão sob a ira de Deus e não são capazes de se ajudar, tampouco de cooperar com a graça regeneradora.
Mas isso é bíblico?
Passemos às Escrituras para verificarmos se de fato esses pontos se fecham biblicamente. Afinal, a verdade última é a Bíblia Sagrada.
Primeiro texto, Romanos 3.23-25:
23Pois todos pecaram e não alcançam o padrão da glória de Deus, 24mas ele, em sua graça, [gratuitamente] nos declara justos por meio de Cristo Jesus, que nos resgatou do castigo por nossos pecados. 25Deus apresentou Jesus como sacrifício [propiciação, lugar de expiação] pelo pecado, com o sangue que ele derramou, mostrando assim sua justiça em favor dos que creem.
Apesar de termos pecado, apesar de sermos, por natureza, injustos ou indignos – i.e., estamos fora do alcance do padrão da glória de Deus –, Deus mesmo nos declara justos. E a motivação para a nossa justificação é a graça de Deus, a gratuita graça de Deus.
Veja que nesse parágrafo apenas (talvez um dos mais importantes da Bíblia), nós já encontramos três dos solas da Reforma: somente a graça (v. 24), somente Cristo (vs. 24-25) e somente a fé (v. 25). Sem contar que, indiretamente, Paulo apresenta a causa última da queda do homem: não dar a glória somente a Deus (v. 23).
SER JUSTIFICADO É o mesmo que dizer: para sempre Deus se volta 100% ao pecador que creu em Cristo. Outro destaque muito importante: ao dizer que “em sua graça [gratuitamente], [Deus] nos declara justos” (v. 24), Paulo está deixando claro que a justificação está longe, infinitamente distante de ser algo que fazemos por merecer ou para ganhar. Com efeito, não fazemos qualquer contribuição para a nossa ressurreição da morte espiritual pela graça, tampouco fazemos alguma contribuição para Cristo como o fundamento de nossa justificação; não fazemos qualquer adição à graça – graça é gratuidade.
SER JUSTIFICADO É (também ou pressupõe) ter sido ressuscitado da morte espiritual para se conseguir crer em Cristo como a nossa justiça. Escrevendo aos efésios, Paulo destaca duas vezes o fato de que “É pela graça que vocês são salvos!” (2.5, 8).
Pergunta: como é a graça de Deus evidente na salvação?
Nós vemos a graça de Deus em evidência, Paulo diz, quando Deus mesmo faz com que o morto viva em Cristo.
Para apreciarmos ainda mais plenamente a graça de Deus, considere comigo o que o apóstolo tem a nos ensinar sobre os mortos no pecado e os vivos pela graça.
Os mortos no pecado
Preste atenção no parágrafo a seguir, fazendo duas perguntas ao texto: [1] quem são os mortos no pecado? E [2] o que significa estar morto no pecado. Veja, Efésios 2.1-3:
1Vocês estavam mortos por causa de sua desobediência e de seus muitos pecados, 2nos quais costumavam viver, como o resto do mundo, obedecendo ao comandante dos poderes do mundo invisível. Ele é o espírito que opera no coração dos que se recusam a obedecer. 3Todos nós vivíamos desse modo, seguindo os desejos ardentes e as inclinações de nossa natureza humana. Éramos, por natureza, merecedores da ira, como os demais.
Quem são os “mortos”? Os efésios estão incluídos. (“Vocês estavam mortos por causa de sua desobediência e de seus muitos pecados”, v. 1). Inclui Paulo e os judeus. (“Todos nós vivámos desse modo…”, v. 3). De fato, inclui todo homem, mulher e criança em Adão. (“[Nós] éramos, por natureza, merecedores [filhos] da ira, como os demais [o restante da humanidade]”, v. 3). A palavra “mortos” inclui pessoas como você, eu e nossos filhos.
O que significa estar “morto”? Paulo aponta para três coisas nesta passagem: [1] Primeiramente, estar morto significa estar sob condenação. Antes de Cristo, estávamos “mortos por causa de [nossa] desobediência e de [nossos] muitos pecados” (v. 1). Deus disse a Adão, em Gênesis 2, que a morte é a penalidade para o pecado. Quando violamos a lei de Deus, nós somos culpados perante esse Deus santo, e respondemos perante a sua justiça.
[2] Em segundo lugar, estar morto significa estar debaixo do jugo. O morto serve a três mestres: o mundo (“viver como o resto do mundo”, v. 2), a carne (“seguindo os desejos ardentes e as inclinações de nossa natureza humana”, v. 3), e o diabo (“obedecendo ao comandante dos poderes do mundo invisível. Ele é o espírito que opera no coração dos que se recusam a obedecer”, v. 2).
[3] Em terceiro lugar, estar morto significa estar sob a ira de Deus. Nós “éramos, por natureza, merecedores da ira, como os demais” (v. 3). Estávamos, com justiça, sujeitos ao descontentamento santo de Deus por causa do nosso pecado. Éramos assim “por natureza” – em outras palavras, nascemos nessa condição de pecado.
Muitos não aceitam esse ensinamento. Fora da igreja (tantas vezes até dentro dela!), muitos assumem que as pessoas são, por natureza, boas. Elas tendem a acreditar, pelo menos implicitamente, que se dermos às pessoas uma educação adequada, os bons exemplos ou as melhores leis, então todos vão seguir o caminho certo. Não é verdade? Não é assim que geralmente se pensa? Mas…
Em que pese leis justas, exemplos nobres e educação de qualidade serem inestimáveis, todos eles são impotentes para mudar o coração comprometido com sua rebelião contra Deus.
Dentro da igreja, muitos já disseram e ainda dizem que as pessoas estão doentes, e até mesmo desesperadamente doentes; e se diz a esses doentes que eles têm em si mesmos os recursos necessários para responder e cooperar com a graça de Deus. Ledo engano! Paulo não diz que estamos doentes. Ele diz que, sem Cristo ou longe de Cristo, nós estamos mortos. Espiritualmente falando, somos cadáveres no chão, sem Jesus. Não podemos nos aproximar de Deus – não conseguimos –, assim como um cadáver não consegue em si mesmo reunir forças para sair de seu túmulo. Esse é o estado de quem não está em Cristo: morto; se doente, precisando de um desfibrilador para ressuscitar.
Os vivos pela graça
Felizmente, Paulo não termina por aí. Começando no versículo 4, ele se volta dos mortos no pecado para Deus, do mal que fizemos para o bem que Deus está fazendo em Cristo. Veja, Efésios 2.4-10:
4Mas Deus é tão rico em misericórdia e nos amou tanto 5que, embora estivéssemos mortos por causa de nossos pecados, ele nos deu vida juntamente com Cristo. É pela graça que vocês são salvos! 6Pois ele nos ressuscitou com Cristo e nos fez sentar com ele nos domínios celestiais, porque agora estamos em Cristo Jesus. 7Portanto, nas eras futuras, Deus poderá apontar-nos como exemplos da riqueza insuperável de sua graça, revelada na bondade que ele demonstrou por nós em Cristo Jesus. 8Vocês são salvos pela graça, por meio da fé. Isso não vem de vocês; é uma dádiva de Deus. 9Não é uma recompensa pela prática de boas obras, para que ninguém venha a se orgulhar. 10Pois somos obra-prima de Deus, criados em Cristo Jesus a fim de realizar as boas obras que ele de antemão planejou para nós.
O apóstolo Paulo destaca três coisas sobre a graça de Deus nesta passagem:
[1] Em primeiro lugar, ele nos aponta para A OBRA DE DEUS nos versículos 4-6: transbordando de graça, Deus nos deu vida juntamente com Cristo, salvou-nos, ressuscitou-nos juntamente com Cristo e nos fez assentar com ele (o Pai) nos lugares celestiais em Cristo Jesus. Receber vida, ser salvo, ressuscitar juntamente com Cristo e assentar com Deus nos lugares celestiais em Cristo Jesus é o que significa a expressão “É pela graça que vocês são salvos!” (v. 5).
[2] Em segundo lugar, Paulo nos aponta para A MOTIVAÇÃO DE DEUS. Por que Deus fez o morto reviver? Não foi por causa de suas obras. Paulo diz, no versículo 9, que não foram as obras que fizemos antes de nos tornarmos cristãos, nem as obras que temos feito depois que nos tornamos cristãos que motivaram a Deus. Caso contrário, poderíamos ter motivo para “orgulhar” (v. 9). Em vez disso, Paulo diz, Deus nos deu vida por causa de sua “misericórdia”, de seu “grande amor com que nos amou” (v. 4). Com efeito, Paulo inclui no seu argumento que o próprio amor e a misericórdia de Deus são a fonte da nossa salvação. É somente pela graça, “não é uma recompensa pela prática de boas obras, para que ninguém venha a se orgulhar” (v. 9).
[3] Em terceiro lugar, Paulo nos aponta para O PROPÓSITO DE DEUS. Com que propósito Deus fez o morto reviver? Paulo diz no versículo 7 que foi para que exibíssemos em nós mesmos a gloriosa obra de Deus – assim, “Deus poderá apontar-nos como exemplos da riqueza insuperável de sua graça, revelada na bondade que ele demonstrou por nós em Cristo Jesus”. Como? Demonstrando, pela nossa vida, a obra prima de nosso Criador e Redentor – afinal, “somos obra-prima de Deus, criados em Cristo Jesus a fim de realizar as boas obras que ele de antemão planejou para nós” (v. 10).
Escrevendo aos coríntios, Paulo deixou claro que não apenas a nossa salvação, mas também a nossa santificação é obra da graça de Deus – ou seja, não é o que fazemos, mas o que Deus mesmo, em nós, realiza, pela graça. 1Coríntios 15.10:
O que agora sou, porém, deve-se inteiramente à graça que Deus derramou sobre mim, e que não foi inútil. Trabalhei com mais dedicação que qualquer outro apóstolo e, no entanto, não fui eu, mas Deus que, em sua graça, operou por meu intermédio.
O que somos ou fazemos não faz por merecer a graça. É o inverso: nós nos tornamos o que somos devido “inteiramente à graça que Deus derramou sobre” nós. A causa decisiva para nos tornarmos o que Deus quer que sejamos (santos em Cristo) e fazermos o que Deus nos chama para fazer (boas obras) é somente a graça de Deus derramada em nós (e não a graça de Deus assistida por nós). Paulo diz a mesma coisa em 2Coríntios 9.8:
Deus é capaz de lhes conceder [toda graça] todo tipo de bênçãos, para que, em todo tempo, vocês tenham tudo de que precisam, e muito mais ainda, para repartir com outros [para realizar boas obras].
Agora… Voltemos na história, bem antes de todas as coisas terem sido criadas, antes da cruz, lá na eternidade, Romanos 11.5-6:
5O mesmo acontece hoje, pois uns poucos do povo de Israel permaneceram fiéis, escolhidos pela graça de Deus. 6E, se a escolha se dá pela graça de Deus, então não se baseia nas obras deles, pois nesse caso a graça deixaria de ser o que verdadeiramente é, ou seja, gratuita e imerecida.
Uma descrição ainda mais clara de que é somente pela graça a nossa eleição para a salvação está em Romanos 9.11-12:
11Antes de eles nascerem [Jacó e Esaú], porém, antes mesmo de terem feito qualquer coisa boa ou má, ela [a mãe] recebeu uma mensagem de Deus. (Essa mensagem mostra que Deus escolhe as pessoas conforme os propósitos dele 12e as chama sem levar em conta as obras que praticam.) Foi dito a Rebeca: “Seu filho mais velho servirá a seu filho mais novo”.
Historicamente, somente pela graça significa que…
Assim sendo, juntamente com nossa herança protestante e reformada (A Declaração de Cambridge, tese 3):
Reafirmamos que na salvação somos resgatados da ira de Deus unicamente pela sua graça. A obra sobrenatural do Espírito Santo é que nos leva a Cristo, soltando-nos de nossa servidão ao pecado e erguendo-nos da morte espiritual à vida espiritual.
Negamos que a salvação seja em qualquer sentido obra humana. Os métodos, técnicas ou estratégias humanas por si só não podem realizar essa transformação. A fé não é produzida pela nossa natureza não-regenerada.
Ó, que o nosso louvor possa ecoar para sempre,
para o louvor da gloriosa graça de Deus.
Usos:
O que é a graça de Deus?
A graça de Deus é sua disposição e ação para dar a maior bênção possível às criaturas menos merecedoras ao maior custo jamais imaginado. [John Piper]
Pergunta: você já provou da graça de Deus? Já provou de Deus pela morte de Jesus Cristo?
Arrependa-se e creia. Arrependimento, fé e novidade de vida são frutos da graça de Deus na sua vida, obra da regeneração de Deus, conduzindo-o a Deus por meio de Jesus Cristo. Prove e veja.
A graça de Deus produz em nós arrependimento do pecado, fé em Cristo para a salvação e novidade de vida como fruto da salvação. Isto significa que:
Somente pela graça nos torna um povo humilde e dependente do poder de Deus: oramos mais, pregamos mais, discipulamos mais, servimos mais… pois sabemos que, pela graça, fomos chamados para as boas obras, certos de que tudo depende de Deus.
Somente pela graça, longe de levar-nos a abraçar uma vida de libertinagem e imprudência moral, leva-nos a buscarmos uma vida de consagração e santidade. Por que isso acontece?
O grande compositor de hinos, Isaac Watts (c. 1707), capturou bem o ensino de Paulo sobre a graça quando escreveu em seu hino “Ao Contemplar a Rude Cruz”, última estrofe do hino 127 do Hinário Para o Culto Cristão:
Se eu fosse o mundo lhe ofertar,
ele o iria desprezar;
seu grande amor [sua graça, sua maravilhosa graça] vem requerer
minha alma, a vida e todo o ser.
S.D.G. L.B.Peixoto
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