22.11.2020
[Hebreus 9.12] Com seu próprio sangue, e não com o sangue de bodes e bezerros, [Cristo] entrou no lugar santíssimo de uma vez por todas e garantiu redenção eterna.
Se há algo que caracteriza corretamente as igrejas evangélicas de nosso tempo, é a ênfase em Jesus Cristo. Qualquer igreja que se diga evangélica, também os católicos romanos, jamais negaria que Jesus é o centro. Com certeza, não! Entretanto, qual Jesus? Que Jesus é esse no centro das confissões de fé? Melhor, quais são eles? Afinal, parece haver um Jesus Cristo para cada pessoa ou igreja.
A embalagem pode trazer “Jesus Cristo” no rótulo, mas e o conteúdo? É Cristo mesmo, ou vinagre? A julgar pelo muito que se ouve e que se vê na ênfase dada a Jesus, parece que o vinho novo do evangelho já se tornou vinagre, e faz muito tempo – o que é uma tragédia. Muito bem expressou James Montgomery Boice (no livro O Evangelho da Graça, p. 84-85, ed. Cultura Cristã), quando escreveu que frequentemente o que se tem é apenas um Jesus que favorece nossos desejos egoístas e que serve ao que pensamos que precisamos.
Realmente, o “evangelho” de hoje, como Boice sustentou, tem muito a ver com autoestima, boas atitudes mentais e morais, saúde, bons relacionamentos, desenvolvimento pessoal e sucesso, especialmente financeiro. A oxidação do evangelho, provocada pela rebeldia do coração humano, tem feito os evangélicos caírem como presas do consumismo de nossos tempos. Uma cosmovisão terapêutica tem substituído as categorias cristãs clássicas – hoje, por exemplo, pecado virou apenas distúrbio ou disfunção; graça virou fonte de favorecimento ou benefício pessoal em termos de saúde e prosperidade; redenção (nascer de novo) foi substituído por restauração (mudança de comportamento)… e outras cosmovisões têm feito o evangelho parecer com ideologia política.
O evangelicalismo se tornou, de fato, um movimento moldado somente pelo capricho popular e o sentimentalismo, a tal ponto que Cristo e sua cruz não são mais centrais – e quando são trazidos para o centro, não mais se parecem com o que dizem as Escrituras. Ou seja: o evangelicalismo contemporâneo, quando não cai preza do consumismo, despenca no vazio do politicamente correto.
Há poucas semanas, por exemplo, um renomado líder evangélico, batista (não digo o nome, pois não quero polemizar com o indivíduo; não o estou atacando, apenas rechaçando suas ideias), fez algumas afirmações em seu Instagram que, do ponto de vista bíblico (por mais que ele tenha citado versículos), é uma aberração. Ouça, mas cuidado, pois pode ser que você sinta náuseas – é vinagre puro (a não ser que prefira vinagre; espero que não):
A cruz não é o flagelo [punição, castigo] de Deus sobre seu filho [sic], mas a mais alta expressão da radical solidariedade divina com a miséria humana.
Sério? Seria a cruz apenas “a mais alta expressão da radical solidariedade divina com a miséria humana”? Ora, a Bíblia diz algo totalmente diferente disso, Isaías 53.5:
Mas ele [Cristo] foi ferido por causa de nossa rebeldia [bem diferente de miséria, não é verdade?] e esmagado por causa de nossos pecados [pecados, não miséria! Sim, o ser humano está em miséria, mas por causa de sua rebeldia contra Deus e de seus pecados; a causa última de nosso problema, seja pessoal, social ou estrutural não é a miséria ou as desigualdades, ou as injustiças, mas o pecado]. Sofreu o castigo [flagelo] para que fôssemos restaurados [nos trazer paz, שׂלומּ – shalôm] e recebeu açoites para que fossemos curados.
Meu Deus! O que disse o referido pastor lá no Instagram – que não houve castigo sobre Cristo, apenas solidariedade da parte de Deus –, rouba de Deus a sua total capacidade de nos salvar, de verdadeiramente nos livrar da morte e da miséria, conforme ele sugere no seu texto.
Pense um pouco.
“Solidarizar”. Que sentido tem essa palavra para nós? Solidarizar, no senso comum, é você, por exemplo, ir ao velório de alguém, abraçar o enlutado e dizer: “Meus sentimentos. Sinto muito por você. Estou aqui por e para você. Sofro com você. Estendo a você meu coração. [Mas eu não posso fazer nada para mudar a situação. Já morreu.]”.
Sim é verdade que Deus Pai se solidarizou com a nossa condição, ele se compadeceu das nossas fraquezas (Hb 4.15) na vida e lá na cruz do Calvário, e assim ele o fez para nos ajudar, de fato nos resgatar, socorrer, salvar de sua ira por causa do pecado. E como ele o fez? Despejando sobre o próprio Filho amado, Jesus Cristo, o castigo pelo nosso pecado, e aí, sim, verdadeiramente nos arrancando do estado de miséria incapacitante e de condenação eterna, dando-nos a vida eterna, a vitória sobre a morte.
Mas não foi isso que disse o pastor. Ele disse que Deus se solidarizou conosco, com o nosso estado de miséria, sem flagelar “seu filho” [quero crer que Filho com letra minúscula tenha sido um erro de digitação, afinal, temos que ler entrelinhas, não letras, palavras e linhas, como ele mesmo diz]. Bem, solidarizar-se conosco, sem despejar sobre o Filho o castigo que nos traz a paz, é o mesmo que dizer: Deus chorou por nós, pranteou conosco, mas não nos salvou da condenação da morte por causa do pecado.
Sabe, eu fico pensando: por que fazer isso com o evangelho?
Qual é o motivo para a pessoa, mesmo citando versos bíblicos que nos são tão caros, desnudar o sentido da cruz e da obra de Cristo, fazendo uso de palavras tão carregadas de ideologia política (i.e., solidariedade, miséria), achando que está apresentando o evangelho? Por que, meu Deus? Afinal, mesmo que contenha o nome no rótulo: “evangelho”, simplesmente não é o evangelho, não é o evangelho tal como os apóstolos mesmos a nós o entregou (1Co 15.1-4). Mesmo que a tentativa seja de abençoar, e acredito que seja, de todo coração acredito que seja, esse pastor não consegue estender bênção, posto que o maior problema do homem não é a miséria, mas o pecado, e a única maneira de Deus nos salvar e nos livrar da morte eterna por causa do pecado é derramando sua condenação, sua ira justa e santa, sobre um substituto perfeito, sem mácula: seu Filho Jesus Cristo.
A cruz não é simplesmente uma demonstração de solidariedade. Ela é sim uma expressão da graça (solidariedade, por assim dizer), mas também é a justiça de Deus, Romanos 3.23-26:
23Pois todos pecaram e não alcançam o padrão da glória de Deus, 24mas ele, em sua graça, nos declara justos por meio de Cristo Jesus, que nos resgatou do castigo por nossos pecados. 25Deus apresentou Jesus como sacrifício pelo pecado, com o sangue que ele derramou, mostrando assim sua justiça em favor dos que creem. No passado ele se conteve e não castigou os pecados antes cometidos, 26pois planejava revelar sua justiça no tempo presente. Com isso, Deus se mostrou justo, condenando o pecado [no Filho na cruz], e justificador, declarando justo o pecador que crê em Jesus.
Esse sim é o significado da cruz, da morte de Jesus: justiça de Deus e justificação do pecador. Arranque o sangue e o castigo da cruz e restará um Deus, de fato, sem solidariedade, apenas impotente, chorando com o pecador e também por algo que ele não pode fazer para mudar. Para haver solidariedade, verdadeiramente solidariedade, há de se ter justiça, punição, castigo – e tudo isso foi despejado sobre Cristo lá na cruz.
Como fomos chegar a este ponto?
De que maneira fomos capazes de transformar o Cristo em mero terapeuta divino, guia, amante [vide cânticos tais quais: Ah Se Meu Amado Me Beijasse], herói, fonte de poder, reformador político, curandeiro, coach, homem solidário e de coração bom ou qualquer outro que não seja o único Mediador entre o Deus santo e o homem pecador (1Tm 2.5), o único nome, dado entre os homens, por meio do qual sejamos salvos da ira de Deus (At 4.12 e Rm 5.6), o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (Jo 1.29)? Como nós fomos capazes de oxidar tanto o evangelho?
Somente assim – tendo Cristo como único Mediador, único nome capaz de salvar e o Cordeiro de Deus substituto – seremos capazes de nos apropriar da promessa de Hebreus 4.16:
Assim, aproximemo-nos com toda confiança do trono da graça, onde receberemos misericórdia e encontraremos graça para nos ajudar quando for preciso.
Mas como fomos capazes de oxidar tanto o evangelho, transformando-o em vinagre?
A Declaração de Cambridge, antes de afirmar Somente Cristo (Solos Christhus), descreveu, em linhas gerais, a razão para a erosão da fé centrada em Cristo:
À medida que a fé evangélica se secularizou [abandonou o eterno pelo mundano ou temporal], seus interesses se confundiram com os da cultura. O resultado é uma perda de valores absolutos, um individualismo permissivo, a substituição da santidade pela integridade, do arrependimento pela recuperação, da verdade pela intuição, da fé pelo sentimento, da providência pelo acaso e da esperança duradoura pela gratificação imediata. Cristo e sua cruz se deslocaram do centro de nossa visão.
Precisamos de uma nova Reforma Protestante. Não de uma nova mensagem para o novo mundo, mas da reafirmação da verdade eterna, do antigo evangelho, neste velho mundo do pecado.
Iniciamos esta série de mensagens no primeiro domingo deste mês, dizendo que a Reforma Protestante reencontrou o tesouro escondido da Igreja: o antigo evangelho, o evangelho da glória e da graça de Deus (nas palavras de Lutero, o capitão da Reforma). Esse evangelho redescoberto é o que nos torna cristãos evangélicos, protestantes e reformados. Esse evangelho, tal como nós o recebemos dos apóstolos, é o que verdadeiramente resolve os nossos principais problemas; ou seja: nascermos de novo espiritualmente (revivermos em Cristo, posto que estamos mortos no pecado em nosso estado natural) e Deus se voltar 100% a nós para sempre (sermos justificados diante de Deus) se dá…
Tendo apresentado, nas duas primeiras mensagens da série, respectivamente: O Antigo Evangelho e o significado de Somente a Graça, nesta mensagem, buscaremos o fundamento bíblico para a afirmação dos reformadores – de que [1] nascermos de novo ou revivermos em Cristo para a vida eterna, e [2] Deus se voltar 100% a nós para sempre – se dá em Cristo Somente.
É impossível superestimar a importância da cruz de Cristo. Ela é central para o cristianismo (não apenas a vida, o exemplo e a mensagem de Cristo; Cristo sem cruz não é cristianismo). Pense, por exemplo, a respeito da necessidade da cruz, do significado da cruz, da pregação da cruz, da ofensa da cruz ou do caminho da cruz. O que todas essas coisas revelam sobre a cruz de Cristo? A cruz de Cristo é o centro do cristianismo bíblico.
A cruz foi necessária para a propiciação ou expiação do pecado. A cruz é a revelação da sabedoria, da justiça e da graça de Deus. A cruz é a mensagem do cristianismo, mesmo que ofenda; e sabemos que ofende. A cruz é o único caminho possível para o cristão viver a sua vida neste mundo. A cruz é o que possibilita ao cristão viver em novidade de vida.
Permita-me dizer de outra maneira: o sentido ou o foco da Bíblia é a salvação, a redenção, e por isso a cruz de Cristo, seguida da ressurreição, é a figura central, o cumprimento das Escrituras.
Por exemplo: o acusar os escribas e fariseus, ou os estudiosos da Bíblia de seu tempo, Jesus os condenou por não conhecerem a própria Bíblia deles, as Escrituras, o Antigo Testamento (Mc 12.24), afirmou que a mente deles era fechada para o sentido último da Bíblia (Lc 24.45). De fato, ele declarou, “Vocês estudam minuciosamente as Escrituras porque creem que elas lhes dão vida eterna. Mas as Escrituras apontam para mim!” (Jo 5.39).
O Senhor estava dizendo duas coisas muito importantes:
Em primeiro lugar, os judeus estavam corretos em ler a Bíblia buscando encontrar nela o caminho para a salvação. Jesus consentiu com alguma coisa da intenção dos judeus: “Vocês estudam minuciosamente as Escrituras porque creem que elas lhes dão vida eterna.” Veja, Jesus não os condenou por lerem as Escrituras em busca de vida eterna. Assim é que se deve ler a Bíblia.
Em segundo lugar, os judeus não estavam buscando a vida eterna por meio de Cristo. Jesus condenou a forma como eles liam a Bíblia: Vocês querem a vida eterna, “mas as Escrituras apontam para mim!” Veja, Jesus os condenou por não o enxergarem nas Escrituras, posto que elas apontam para ele como o cumprimento de todas as promessas de Deus para a vida eterna.
Após a ressurreição, Cristo explicou as Escrituras a dois de seus discípulos, no caminho para Emaús. Antes, porém, ele os repreendeu duramente por não terem lido o Antigo Testamento como tendo ele mesmo, o Cristo, no centro. Lucas 24.25-27:
25 Então Jesus lhes disse: “Como vocês são tolos! Como custam a entender o que os profetas registraram nas Escrituras! 26Não percebem que era necessário que o Cristo sofresse essas coisas antes de entrar em sua glória?”. 27Então Jesus os conduziu por todos os escritos de Moisés e dos profetas, explicando o que as Escrituras diziam a respeito dele.
Imaginem o poder daquele sermão expositivo de Jesus! Não é de admirar que os corações daqueles homens ardessem dentro deles, enquanto Jesus falava com eles e os explicava as Escrituras (Lc 24.32). Jesus ensina aqui como se deve ler e pregar a Bíblia. Não é, principalmente, sobre heróis bíblicos ou lições de vida que tratam as Escrituras, mas a revelação de Cristo, somente Cristo, e ele crucificado para a nossa salvação. Pedro, o apóstolo, entendeu a hermenêutica (a forma de interpretar a Bíblia) e a mensagem de Jesus, quando anotou em sua primeira carta, 1Pedro 1.8-11:
8Embora nunca o tenham visto, vocês o amam. E, ainda que não o vejam agora, creem nele e se regozijam com alegria inexprimível e gloriosa, 9pois estão alcançando o alvo de sua fé, a sua salvação. 10Até mesmo os profetas queriam saber mais sobre essa salvação e investigaram a respeito, quando profetizaram acerca da graça preparada para vocês. 11Buscavam descobrir a que tempo ou ocasião se referia o Espírito de Cristo, que neles estava, ao predizer o sofrimento de Cristo [cruz] e sua grande glória posterior.
Veja que o próprio Cristo e o seu principal apóstolo, Pedro (ao lado de Paulo), atestaram que, de capa a capa, as Escrituras apontam para Cristo, a cruz de Cristo como o único caminho para a salvação. É tanto que lá em Gênesis (na lei de Moisés, no primeiro livro da Lei) é que pela primeira vez nós ouvimos o evangelho – sim, Genesis 3.15 nos apresenta pela primeira vez para a cruz de Cristo (é o protoevangelho): “Farei que haja inimizade entre você e a mulher, e entre a sua descendência e o descendente dela. Ele lhe ferirá a cabeça, e você lhe ferirá o calcanhar”.
De Eva e Adão, nasceu Sete (Gn 4.25), descendente de quem nasceu Jesus, aquele que lá na cruz esmagou a cabeça de Satanás, libertando-nos da dívida do pecado, Colossenses 1.13-15:
13Então Deus lhes deu vida com Cristo, pois perdoou todos os nossos pecados. 13Ele cancelou o registro de acusações contra nós, removendo-o e pregando-o na cruz. 15Desse modo, desarmou os governantes e as autoridades espirituais e os envergonhou publicamente ao vencê-los na cruz.
Sobre a cruz, os profetas também falaram, especialmente Isaías (53.5-6):
5Mas ele foi ferido por causa de nossa rebeldia e esmagado por causa de nossos pecados. Sofreu o castigo para que fôssemos restaurados e recebeu açoites para que fôssemos curados. 6Todos nós nos desviamos como ovelhas; deixamos os caminhos de Deus para seguir os nossos caminhos. E, no entanto, o SENHOR fez cair sobre ele os pecados de todos nós.
Jesus e a sua cruz aparecem na Lei e nos Profetas, mas também aparece nos Escritos ou Escrituras, conforme o próprio Jesus atestou (Lc 24.27). Dentre os Escritos, o Salmo 22 apresenta de forma particularmente gráfica a morte de Jesus na cruz (vs. 1, 8, 14-18):
1Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? […] 8“Esse é o que confia no SENHOR? Que ele o livre! Que o liberte, se dele se agrada!”. […] 14Minha vida é derramada como água; todos os meus ossos estão desconjuntados. Meu coração é como cera que se derrete dentro de mim. 15Minha força secou, como um caco de barro, minha língua está grudada ao céu da boca; tu me deitaste no pó, à beira da morte. 16Meus inimigos me rodeiam como cães, um bando de perversos me cerca; perfuraram minhas mãos e meus pés. 17Posso contar todos os meus ossos; meus inimigos me encaram e desdenham de mim. 18Repartem minhas roupas entre si e lançam sortes por minha veste.
Não são apenas esses textos na Lei, nos Profetas e nos Escritos de sabedoria, há ainda muitos outros no Antigo Testamento que apontam para Cristo e sua cruz como o centro de toda a Escritura Sagrada. Escribas e Fariseus, no entanto, conquanto buscassem nas Escrituras salvação, não olhavam para elas como a revelação do Cristo (o Messias prometido de Israel). Como o sabemos? As perguntas que se faziam à Escritura eram triviais e revelam no que de fato os judeus comuns, em seu estado natural, se firmavam como meio para a vida eterna:
“O que acontece se uma pessoa se divorcia e casa de novo?” (Mt 19.3-12)
“Por que seus discípulos colhem grãos no sábado?” (Mt 12.1-8)
“Quem pecou, esse homem ou seus pais, para que nascesse cego?” (Jo 9.2)
As perguntas que eles faziam, de tão triviais, pareciam-se mais com um jogo de auditório na televisão do que com questões de vida eterna. Entretanto, conforme já dissemos, elas revelam no que aqueles homens se estribavam para a salvação: em guardar a lei. Era tão pueril o conhecimento deles (e até dos apóstolos no início) que chega a parecer que para eles a Bíblia não passava de um “manual para a vida”, um “livro de usos e costumes”, cuja finalidade é nos ajudar a resolver questões relacionadas apenas a esta vida. Foi por não concordar com isso que Michael S. Horton escreveu (Reforma Hoje, p. 112):
Pregar a Bíblia como “o manual para a vida” ou como a resposta a todas as perguntas, em vez de como a revelação de Cristo, é transformar a Bíblia num livro inteiramente diferente. Era assim que os fariseus abordavam a Escritura, entretanto, […] Para os fariseus, as Escrituras eram uma fonte de trivialidades para os dilemas da vida. É certo que a Escritura fornece sabedoria divinamente revelada e centrada em Deus para a vida, mas se esse fosse seu objetivo primordial, o Cristianismo seria uma religião de automelhoramento, que seria alcançado ao se seguir exemplos e exortações, não uma religião da cruz.
É bem isso que Paulo aponta aos coríntios, cuja obsessão pela sabedoria e pelos milagres havia obscurecido a verdadeira sabedoria e o maior de todos os milagres. E qual será esse milagre? Cristo se tornou para nós da parte de Deus sabedoria, justiça, santificação e redenção (1Co 1.28-31). Ouça o texto todo, 1Coríntios 1.20-31:
20Diante disso, onde ficam os sábios, os eruditos e os argumentadores desta era? Deus fez a sabedoria deste mundo parecer loucura. 21Visto que Deus, em sua sabedoria, providenciou que o mundo não o conhecesse por meio de sabedoria humana, usou a loucura de nossa pregação para salvar os que creem. 22Pois os judeus pedem sinais, e os gentios buscam sabedoria. 23Assim, quando pregamos que o Cristo foi crucificado, os judeus se ofendem, e os gentios dizem que é tolice. 24Mas, para os que foram chamados para a salvação, tanto judeus como gentios, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus. 25Pois a “loucura” de Deus é mais sábia que a sabedoria humana, e a “fraqueza” de Deus é mais forte que a força humana. 26Lembrem-se, irmãos, de que poucos de vocês eram sábios aos olhos do mundo ou poderosos ou ricos quando foram chamados. 27Pelo contrário, Deus escolheu as coisas que o mundo considera loucura para envergonhar os sábios, assim como escolheu as coisas fracas para envergonhar os poderosos. 28Deus escolheu coisas desprezadas pelo mundo, tidas como insignificantes, e as usou para reduzir a nada aquilo que o mundo considera importante. 29Portanto, ninguém jamais se orgulhe na presença de Deus. 30Foi por iniciativa de Deus que vocês estão em Cristo Jesus, que se tornou a sabedoria de Deus em nosso favor, nos declarou justos diante de Deus, nos santificou e nos libertou do pecado. 31Portanto, como dizem as Escrituras: “Quem quiser orgulhar-se, orgulhe-se somente no Senhor”.
Não nos apressemos em condenar os coríntios, pois muitos evangélicos estão na mesma posição deles: de um lado estão aqueles que, como os judeus, estão obcecados com sinais, maravilhas, curas e prosperidade; por outro lado estão aqueles outros que, como os gregos, estão obcecados por sabedoria, “honestidade intelectual”, “lucidez” ou “mente iluminada” capaz de fazer a ponte que eles julgam necessária entre a fé e a razão.
Há, entretanto, um sério problema com os dois lados: quando essas agendas são colocadas como centrais na leitura da Bíblia, na pregação, no culto, na evangelização e no discipulado, e também no ministério pastoral, a pregação da cruz de Cristo irá se tronar ofensiva ou estranhamente deslocada. A menos que se olhe para a cruz e a declare apenas como um abraço de um Deus solidário que não despejou condenação nenhuma do pecado sobre seu Filho eterno. No entanto, percebeu como, de repente, ao se buscar respostas para o que a Bíblia não traz como resposta última, o evangelho e o cristianismo se tornam outra mensagem e religião?
Para que o cristianismo não se torne outra coisa ou para que o evangelho não se torne outro evangelho, precisamos crer e proclamar como Paulo em 1Coríntios 2.1-8:
1Irmãos, na primeira vez que estive com vocês, não usei palavras eloquentes nem sabedoria humana para lhes apresentar o plano secreto de Deus. 2Pois decidi que, enquanto estivesse com vocês, me esqueceria de tudo exceto de Jesus Cristo, aquele que foi crucificado. 3Fui até vocês em fraqueza, atemorizado e trêmulo. 4Minha mensagem e minha pregação foram muito simples. Em vez de usar argumentos persuasivos e astutos, me firmei no poder do Espírito. 5Agi desse modo para que vocês não se apoiassem em sabedoria humana, mas no poder de Deus. 6No entanto, quando estamos entre pessoas maduras, falamos com palavras de sabedoria, mas não com o tipo de sabedoria desta era ou de seus governantes, que logo caem no esquecimento. 7Pelo contrário, a sabedoria a que nos referimos é o mistério de Deus, seu plano antes secreto e oculto, embora ele o tenha elaborado para nossa glória antes do começo do mundo. 8Os governantes desta era, por sua vez, não a entenderam, pois se a houvessem entendido não teriam crucificado o Senhor da glória.
A cruz de Cristo é o centro do cristianismo. Mas é assim no meio evangélico contemporâneo? Absolutamente não, conforme atestou Michael Horton:
Compare os hinos centrados na cruz, por exemplo, que Isaque Watts, Charles Wesley e outros escreveram, com os cânticos de louvor mais populares de hoje nos quais o sentimentalismo muitas vezes parece imperar. Onde está a cruz? Está perdida [de um lado] numa teologia de glória [e da libertação ou de evangelho social, de outro lado], uma mensagem de triunfo que conduz à exaustão do fogo, em vez de levar ao desespero que conduz a Cristo. Portanto, Cristo é cada vez mais aclamado hoje dentro do evangelicalismo popular, sobretudo como o exemplo moral que mais altamente ilustra o amor e o perdão de Deus e que nos dá diretrizes úteis, e não como o sacrifício propiciatório pelos pecadores que merecem a ira divina.
O CENTRO DO CRISTIANISMO É A CRUZ DE CRISTO. Mas o que hoje se vê não é a cruz. Somente Cristo da Reforma Protestante é, em essência, somente o sacrifício de Cristo na cruz é capaz de, pela graça, por meio da fé, justificar o pecador diante de Deus. Não há substitutos – sacrifícios, leis, santos, mediadores ou cerimônias. Cristo é a satisfação, o sacrifício e a substituição de Deus para a salvação do pecador. Veja alguns textos:
Hebreus 9.12 (NVT) | Com seu próprio sangue, e não com o sangue de bodes e bezerros, [Cristo] entrou no lugar santíssimo de uma vez por todas e garantiu redenção eterna.
Gálatas 2.21 (NVT) | Não considero a graça de Deus algo sem sentido. Pois, se a obediência à lei nos tornasse justos diante de Deus, não haveria necessidade alguma de Cristo morrer.
Gálatas 5.2-4 (NVT) | 2Prestem atenção! Eu, Paulo, lhes digo: se vocês se deixarem ser circuncidados, Cristo de nada lhes servirá. 3Volto a dizer: todo aquele que se deixa ser circuncidado deve obedecer a toda a lei. 4Pois, se vocês procuram tornar-se justos diante de Deus pelo cumprimento da lei, foram separados de Cristo e caíram para longe da graça.
2Coríntios 5.21 (NVT) | Pois Deus fez de Cristo, aquele que nunca pecou, a oferta por nosso pecado, para que por meio dele fôssemos declarados justos diante de Deus.
Romanos 5.17-19 (NVT) | 17A morte reinou sobre muitos por meio do pecado de um único homem. Ainda maior, porém, é a graça de Deus e sua dádiva de justiça, e todos que a recebem reinarão em vida por meio de um único homem, Jesus Cristo. 18É verdade que um só pecado de Adão trouxe condenação a todos, mas um só ato de justiça de Cristo removeu a culpa e trouxe vida a todos. 19Por causa da desobediência a Deus de uma só pessoa, muitos se tornaram pecadores. Mas, por causa da obediência de uma só pessoa a Deus, muitos serão declarados justos.
Romanos 8.1-3 (NVT) | 1Agora, portanto, já não há nenhuma condenação para os que estão em Cristo Jesus. 2Pois em Cristo Jesus a lei do Espírito que dá vida os libertou da lei do pecado, que leva à morte. 3A lei não era capaz de nos salvar por causa da fraqueza de nossa natureza humana, por isso Deus fez o que a lei era incapaz de fazer ao enviar seu Filho na semelhança de nossa natureza humana pecaminosa e apresentá-lo como sacrifício por nosso pecado [ARA: “condenou Deus, na carne, o pecado”].
A teologia protestante, reformada ou evangélica (raiz) afirma que a Escritura e sua doutrina sobre a graça e a fé enfatizam que a salvação é solus Christhus, “somente por Cristo”, isto é, Cristo é o único Salvador (At 4.12). Benjamin B. Warfield, o último expoente da teologia de Princeton (final do século XIX, início do século XX) escreveu que “o poder salvador da fé reside, portanto, não em si mesma [na fé], mas repousa no Salvador Todo Poderoso [Cristo somente]”.
A centralidade de Cristo é o fundamento da fé protestante ou evangélica. Martinho Lutero disse que Jesus Cristo é o “centro e a circunferência da Bíblia” – isso significa que quem ele é (o Verbo eterno que se fez carne) e o que ele fez (o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo) em sua morte e ressurreição são o conteúdo fundamental da Escritura. Ulrico Zuínglio, o principal reformador da Suíça, disse que “Cristo é o Cabeça de todos os crentes, os quais são o seu corpo e, sem ele, o corpo está morto”.
Sem Cristo, nada podemos fazer; nele, podemos fazer todas as coisas para viver e multiplicar o evangelho (Jo 15.5; Fl 4.13). Como vimos, somente Cristo pode trazer salvação e somente nele conseguimos força para frutificar. A união com Cristo pela graça e por meio da fé é o único caminho da salvação.
Nós precisamos urgentemente ouvir solus Christus – somente por Cristo – em nossos dias de teologia humanista e pluralizada. Muitas pessoas hoje questionam a crença de que a salvação é somente pela fé em Cristo. Como Joel Beeke diz, eles “estão voltando à velha e falida forma de abordagem cristológica do século XIX, do liberalismo protestante, e chamando-a de ‘nova’, quando, na verdade, é pouco mais que uma ‘Jesusologia’ superficial”.
Nossos pais reformadores, aproveitando uma perspectiva que rastreia todo o caminho de volta aos escritos de Eusébio de Cesaréia, lá no século IV, acharam útil pensar a respeito de Cristo como Profeta, Sacerdote e Rei. A Confissão Batista de Londres de 1689, por exemplo, coloca isso da seguinte forma: “Cristo, e somente Cristo, está apto a ser o mediador entre Deus e o homem. Ele é o profeta, sacerdote e rei da igreja de Deus” (8.9).
Como o Profeta, Jesus é o único que pode revelar o que Deus tem planejado na história “desde a fundação do mundo”, e que pode ensinar e manifestar o real significado das “escrituras dos profetas”: salvar o pecador da ira de Deus (cf. Rm 16.25-26).
Como o Sacerdote, Jesus é o único modo de obtermos salvação da ira de Deus. Nas palavras da Confissão Batista de Londres de 1689: “por causa do nosso afastamento de Deus e da imperfeição de nossos melhores serviços, precisamos de seu ofício sacerdotal para nos reconciliar com Deus e nos tornar aceitáveis por ele” (8.10).
Como o Rei, Jesus é Senhor de tudo e de todos, inclusiva da vida dos crentes. Ele reina sobre sua Igreja por meio de seu Espírito Santo (At 2.30-33); soberanamente dá o arrependimento ao impenitente e concede perdão ao culpado (At 5.31). Cristo, nas palavras do Catecismo de Heidelberg, é “o nosso Rei eterno que nos governa por sua Palavra e Espírito, e que defende e preserva-nos no desfrute da salvação que ele adquiriu para nós”. Como o Herdeiro real da nova criação, ele nos levará a um reino de eterna luz e amor.
Neste sentido, podemos concordar com João Calvino quando ele diz:
Nós podemos passar pacientemente por esta vida com sua miséria, frieza, desprezo, injúrias e outros problemas – satisfeitos com uma coisa: que o nosso Rei nunca nos deixará desamparados, mas suprirá as nossas necessidades, até que, ao terminar nossa luta, sejamos chamados para o triunfo.
Você será salvo e crescerá na vida cristã apenas se viver obedientemente sob o domínio de Cristo e pelo seu poder. Se você é um filho de Deus, Cristo em seu tríplice ofício como Profeta, Sacerdote e Rei significará tudo para você.
Você ama solus Christus (Somente Cristo)? Você o ama em sua pessoa, ofícios, naturezas e benefícios? Ele é o seu Profeta para ensinar-lhe pelas Escrituras? Ele é o seu Sacerdote que se sacrificou no seu lugar e agora intercede por você à direita de Deus? Ele é e o seu Rei para governá-lo e guiá-lo? Arrependa-se e creia. Receba-o como seu único e suficiente Salvador. Tenha-o como o seu Profeta, Sacerdote e Rei.
É sabido que depois de uma execução empolgante da Nona Sinfonia de Beethoven, o famoso maestro italiano Arturo Toscanini (1867-1957) disse à orquestra: “Eu não sou nada. Você não é nada. Beethoven é tudo!” Se Toscanini pôde dizer isso sobre um compositor brilhante, mas que está morto, quanto mais os cristãos devem dizer o mesmo sobre o Salvador que vive, o qual, no que diz respeito à nossa salvação, é o compositor, músico e até mesmo a própria bela música da nossa nova vida!
Usos:
1. De acordo com a Bíblia, o centro da fé cristã não é a manjedoura em Belém dos românticos e sentimentalistas cristãos, tampouco o Jesus histórico, mestre da ética e da moral, dos teólogos liberais. O centro da fé cristã é a cruz no Calvário. Focalizar qualquer aspecto da vida, do ministério ou da mensagem de Jesus Cristo à parte da morte de Cristo como expiação ou propiciação pelo pecado desembocará em um sentimentalismo vazio e na negligência do horror e da magnitude do pecado.
a. A manjedoura, com efeito, aponta para a encarnação do Verbo eterno de Deus, posto que era necessário que um Deus-homem morresse no lugar do pecador. Preguemos Cristo, do começo ao fim.
b. Os ensinos e os imperativos de Jesus somente serão possíveis de se viver – e deverão ser vividos – pela graciosa obra do Espírito que Cristo mesmo comprou para os seus lá na cruz. Paulo escreveu em Romanos 8.3-4:
3[…] Com isso [com o sacrifício de Jesus por nosso pecado], [Deus] declarou o fim do domínio do pecado sobre nós, 4de modo que nós, que agora não seguimos mais nossa natureza humana, mas sim o Espírito, possamos cumprir as justas exigências da lei.
2. Sendo a morte de Cristo na cruz o verdadeiro foco do cristianismo, não poderá haver evangelho nem igreja que se diga evangélico ou evangélica sem a cruz. James Montgomery Boice escreveu assim (O Evangelho da Graça, p. 100):
Natal por si só não é evangelho. A vida de Cristo não é evangelho. Nem mesmo a ressurreição de Cristo dentre os mortos por si só é evangelho. As boas novas não são apenas que Deus se tornou homem, nem que Deus falou em Cristo para revelar um caminho apropriado de vida para nós, nem mesmo que a morte, nosso grande inimigo, foi vencida. As boas novas são que a questão do pecado foi resolvida, que Jesus sofreu a penalidade do pecado por nós como nosso substituto, e que todos que nele creem podem esperar os céus seguramente.
Qualquer “evangelho” que fale meramente acerca do evento-Cristo, querendo dizer Encarnação sem a Expiação, é um evangelho falso. Qualquer evangelho que fale a respeito do amor de Deus sem mostrar aquele amor levando-o a pagar o preço extremo pelo pecado na pessoa de seu Filho na cruz, é um falso evangelho. O único evangelho verdadeiro é o evangelho de “um Mediador” que se deu por nós (1Tm 2.5, 6).
Se não estivermos pregando este evangelho, não estaremos pregando evangelho nenhum; se a igreja não estiver pregando este evangelho, não estará pregando evangelho nenhum – e se ela, a igreja, não estiver pregando o evangelho, ela não é uma verdadeira igreja.
A esta altura o evangelicalismo [você, como indivíduo que professa a fé evangélica] necessita desesperadamente redescobrir suas raízes e recuperar seu significado bíblico essencial.
3. Finalmente, da mesma maneira como não pode haver evangelho sem expiação ou sacrifício, sem o verdadeiro sentido da cruz de Cristo, não pode haver vida cristã sem a morte substitutiva de Cristo na cruz. Sem a expiação, a religião, mesmo a cristã, se torna um tipo de autodivinização humana e leva à arrogância e presunção, que é o que muito do evangelicalismo tem se tornado e está fazendo.
Com a expiação, a realização da cruz extrai amor de nós e se torna um exemplo do tipo de auto sacrifício que deveríamos estar fazendo. Somos levados a dar tudo o que temos a Jesus Cristo, porque Jesus deu tudo que tinha por nós e nos revestiu de poder, pelo Espírito para fazermos o mesmo.
Portanto, Somente Cristo, produzirá:
Prove de Cristo, somente de Cristo, pela graça somente e por meio da fé somente , e veja a salvação, a comunhão e a transformação que o Senhor lhe proporcionará. Prove e veja.
S.D.G. L.B.Peixoto
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